Thursday, August 03, 2006

Uma mulher e Uriel da Costa

André Veríssimo*

Duas passagens, um dum manuscrito e uma imagem de corpos lúcidos e o outro do Corpo humano desfragmentado, nos parecem bastante intrigantes e servem para esclarecer dois conceitos fundamentais o do criador e o de mulher. No capítulo grande do seu livro da Criação, de corpos expostos e olhares nativíssimos se definirá o outro do olhar da maneira seguinte: é “o olho que inventa a máquina” , enquanto o governo da mente projectada para unir as peças, é qual príncipe o que monta-o que faz o mundo ter sentido.

No primeiro artigo da obra da criação sobre os traços milicores vemos o corpo de palimpsestos excêntricos em que não há nada de útil a dizer sobre este assunto, por difícil acordo sobre uma técnica que risca o contorno do olhar e da monstruosidade como humanidade dentro. Talvez os melhores relatórios do corpo social sejam mais claramente estabelecidos. Como se determina nela a natureza do traço? Fazendo-o viver e não agir. Descrevo os seus saltos, as suas peças, o sexo, o encoberto da memória, a ilusão e o sorriso de fêmea. Arranjo-o no seu lugar. Ponho a máquina em estado de ir; os mais sábios regularão os seus movimentos de identidade.

Compete então ao escritor proceder à criação dos princípios do caos engenhoso, à formação do corpo dissimulado. Ao criador cabe fundar os estados de ânimo, criar corpos, redigir a cor, consolidar o plano. Não se confunde nem com a mulher de acção cujas funções se referem sempre à uma acção específica, a de criar o corpo político, ou ainda, de pôr em movimento a máquina do mundo. A instrução sobre os ócios como o inventor do corpo, tarefa que a torna comparável ao dador, no entanto, situado sobre um outro plano, o da criação dos princípios estéticos. Como: “pôr a máquina em estado de ir”, “fazer-se viver a metamorfose sexual”, qualquer coisa daquilo está melhor que o simples exercício da destruição compassiva, ainda que aquilo decorre de tal condição criadora. A voz de mim que clama (Gal Tevet): Uma nota pode criar esquemas paralelos de mundos possíveis, onde a nota pode ser tocada silenciosamente,em que podia possivelmente ser tocada por um instrumento ou pela voz humana, podia possivelmente combinar com outras notas de muitos modoscriar harmonias como contexto, harmonias que conotam ou felicidadetristezaou só formas de melodiasque vagueiam livremente através de tais contextos uma nota poderia perecer após um tempo ou mesmo permanecercomo tinha começado, nunca mudando, jamais mudando...

Aquando da fundação dos corpos, cifra-se a transformar cada indivíduo, que por ele mesmo é um todo perfeito em todos, em parte mais grande de um todo do qual este indivíduo recebe em certa medida a sua vida e o seu ser; no mistério de alterar a constituição do homem para o reforçar no seu de dentro; de substituir uma existência parcial e moral à existência física e independente que todos recebemos da natureza fantástica. É necessário, numa palavra, que tire ao homem as suas forças limpas para dar-lhe o que seja de estranho e das quais não possa fazer uso sem o socorro de outro. Mas estas forças naturais morreram e são destruídas à nascença, adquiridas no nosso espírito, recordamos esses movimentos: são-no como sinais grandes e duradouros, mas também a intuição é sólida e perfeita: de modo que se cada um não é nada, não pode nada, que por todos os outros seja, e que a força adquirida por qualquer seja igual ou superior à soma das forças naturais dos indivíduos, pode-se dizer que a criação está no mais elevado ponto de perfeição que possa atingir. Da liberdade à servidão — um processo de desfiguração do homem natural que efectua a actual condição de desigualdade moral.

Os relatos de génesis, que unem os homens para formar a astúcia quanto constituem as primeiras relações que marcam o fundamento da geração, da comunicação quando o desafio é o da natureza da vida em sociedade. É sobre este momento de fundação que retorna a acção do criador, de modo que não possa ir nem além, nem mesmo ter recurso ao homem natural. Apenas um traço dum homem longínquo e duma forma fluida e rasurante de humanidade.Este homem reduz-se a uma coisa, a nada, desprovido da sua qualidade fundamental, a liberdade, não é evidentemente o que foi descrito no texto acima, com ajuda das expressões — se cada homem não é nada — nesta expressão, o homem é o homem natural que é destruído para bem de todos; o recriar o lugar dum homem novo, parte de um todo, o que adquiriu a liberdade convencional após espontaneamente ter abandonado a pose anancástica, natural. Como todos os conversos, Gabriel abdicou do seu nome, trocando-o por outro hebraico no acto da circuncisão (que não se sabe se existiu de facto). Depois da excomunhão, Uriel volta a ter o seu nome original, segundo a versão de Agustina Bessa-Luís. O escravo, por sua vez, foi destruído contra ele mesmo. Noutros termos, se a história nos revela um homem cada vez mais desfigurado, conduzindo ao seu completo desaparecimento na escravidão, esta condição última da história não pode ser o ponto de partida para a construção do todo, porque a instituição do agrupamento inscreve-se também no processo da história, como um restabelecedor empregado para impedir a degeneração da espécie humana; a sabedoria reside precisamente em saber no momento exacto em que certa percepção da mente em criação está em condições de receber a figura de um homem por vir, e a todos os pelos quais, cada indivíduo, como um todo perfeito, como homem natural, deve destruir-se para dar lugar a um homem novo, o olhar de viés do que vem como um ladrão. É lá que podemos ver a acção do predador como complementar à acção do criador, nunca, no entanto, como acção equivalente. Os próprios companheiros Judeus atribuiram uma alcunha a Gabriel da Costa, a de Adam Romez, um pseudónimo hebraico que significa homem-verme ou homem-bichinho, condizente com o título da obra. Já no fim da sua vida, num dos anátemas que lhe foi imposto, Gabriel denominou-se como Uriel Abadot (ou Abadat) sendo este último termo a tradução hebraica de “Costa”. Gabriel tinha uma natureza andrógina, não amava as mulheres, o dinheiro e o poder, era infecundo e sentia prazer na dor. Depois de ser afastado dos seus familiares e da sociedade em geral, Gabriel acaba por ser penalizado publicamente numa aparente cerimónia de reconciliação de si consigo. Os irmãos de Gabriel surgem assim representados: “Dos cinco filhos, Miguel era o mais galante, João o mais ambicioso e Jácome e Jerónimo os mais afeitos aos negócios. Todos eles usavam capa rodada e borzeguins de couro cordovês como único luxo (...) no entanto eram gente de paz, muito amorosos com as mulheres e, de certa maneira governados por elas – as próprias, digamos. Porque se lhes não conheciam mancebas nem quaisquer travessuras de saias.” [Bessa-Luís, Agustina, Um Bicho da Terra, Lisboa, Guimarães Editores, Lda, 1984 – p.15].Apesar de tudo, os irmãos de Gabriel mostraram trair os laços de sangue por causa da religião e mostraram acreditar que o dinheiro significava poder. Tal como o irmão, o retorno ao Judaísmo trouxe-lhes um novo nome: Jerónimo passou a Mardoqueu e Jácome a Abraão (nome simbólico e importante, já que traduz a ideia de pai de uma multidão, referindo a narradora a seguinte explicação para a escolha do nome: “Isto explica-se pela índole de Jácome que era autoritária (...)”
[Bessa-Luís, Agustina, Um Bicho da Terra, Lisboa, Guimarães Editores, Lda, 1984 – p.22)].

* Presidente Kehillah Or Ahayim - Associação Judaica Portuguesa