Wednesday, August 16, 2006

Construção ou Reconstrução de identidades: O marranismo em Pernambuco

Tânia Kaufman[1]

Seminário Internacional Brasil & Espanha

Gostaria de iniciar meus comentários nesse espaço, introduzindo algumas questões relevantes para as bases de uma Etnologia Judaica no Brasil. Considerando que a história das colonizações européias é contada sob diferentes pontos de vista, e que a colonização portuguesa teve formas específicas de atuação na constituição da América Portuguesa, e que dessa mobilização resultou a vinda dos judeus para o Brasil, pergunta-se:
u Até que ponto, a integração de judeus em novas sociedades, sempre apoiada no sistema de adequação intercultural, foi consistente em Pernambuco, de modo a permanecer na memória cultural da população nordestina, mesmo que de forma atávica ou silenciada?
u Qual teria sido o papel dos cristãos-novos e dos cripto-judeus ou dos marranos e dos judeus sefaradim e/ou ashkenazim na dinâmica sócio-cultural histórica e geopolítica brasileira?
u Qual o sentido das diásporas judaicas, da Europa para o Brasil no século XVI e mais tarde, no século XX, e como os judeus criaram um lastro de vida judaica em Pernambuco, cujos resíduos culturais preservados, inclusive, na reserva mental dos judeus durante a Inquisição, permitiram se fazer presentes até os dias atuais?
u Houve, em algum momento da história dos judeus em Pernambuco ou mesmo no Brasil, a idéia de ruptura com o controle de sua própria história?

Passos para uma Etnologia Judaica no Brasil

Foi assim que, estimulados por uma nova ordem de discussão estabelecida dentro dos estudos sobre a cultura brasileira nos últimos dez anos, estamos propondo olhar, ouvir e escrever sobre as tendências ocultas dos feitos praticados pelos cristãos novos e cripto judeus na sociedade colonial brasileira, em nome de uma hegemonia religiosa durante os séculos XVI até o século XVIII, e depois no século XX.
Olhar a maneira como os acontecimentos dessa historia ficaram confinados no passado, porém de forma apenas silenciada, e chegaram até o presente, trazendo fatos que, hoje, são transformados em saber acadêmico, mediados por uma proveitosa interdisciplinaridade. A busca desses vestígios e suas relações com a cultura nordestina são o interesse básico de nossos estudos e pesquisas. Ouvimos, entre outras fontes, as denúncias e confissões contidas na Coleção Pernambucana, na parte concernente às Denunciações de Pernambuco (1593-1595) e as Confissões de Pernambuco (1594-1595), editadas sob a supervisão do Prof. José Antônio Gonsalves de Mello em 1970, que vem representando uma das mais importantes bases de informações sobre as chamadas práticas judaizantes em terras pernambucanas.
A historiadora Anita Novinsky desvendando os processos que engendravam o silenciamento das práticas judaicas expõe a dimensão histórica do marranismo, concentrando o processo do conhecimento histórico no próprio sujeito alvo das práticas judaizantes. Os conteúdos dos processos por ela estudados revelam os passos de uma intensa vida judaica nos subterrâneos da sociedade colonial. Ela foi em busca do lugar onde a história foi produzida e atavicamente silenciada.
“Escutamos” as palavras de narradores que viveram a história, tanto nos escritos coevos sobre cotidianos coloniais e dos historiadores contemporâneos. E, sobre os que aportaram na cidade do Recife, no início do século XX, temos as “falas” como testemunho do vivido na migração da Europa para o Brasil, coletadas através de depoimentos gravados e/ou escritos. Escrevemos, levando em conta que a memória social histórica se alimenta de dados da tradição e da transmissão da herança cultural de um grupo.
No caso dos judeus de Pernambuco, a localização de tais elementos no passado, mostra que, grande parte deles, foi sincretizada ou esteve presente em práticas clandestinas, face às condições impostas pela Inquisição. Basta conferir o que ficou registrado pelo Inquisidor durante a visitação do Santo Ofício ao Brasil, deixando para a posteridade o panorama social e psicológico construído pelas denúncias de práticas judaizantes [2].
Contudo, foi preciso avançar mais. Foi preciso desenvolver um inventário sistemático a respeito do fenômeno da interculturalidade no nordeste do Brasil, considerando as formas pelas quais o cristão-novo era atingido pelo poder instituído em nome da Igreja Católica e das autoridades da metrópole portuguesa.
Os marranos estavam ligados à sua própria identidade pela consciência ou pelo auto conhecimento, atribuindo valor à imagem que tinham de si mesmo. A preocupação com essa imagem levava-os a desobedecer, a revoltar-se, mas também, levava-os a obedecer ainda mais, mesmo que apenas no domínio público. Assim, na intimidade da casa assumiam a identidade judaica e perante a sociedade geral buscavam apenas a identidade social que lhes permitia a inclusão na situação colonial.
A natureza da revolta diante das agressões do poder clerical à auto-imagem do marrano é diferente de uma revolta contra mecanismos econômicos ou simplesmente políticos. É a auto-imagem do indivíduo provocada. Daí a revolta do orgulho e da altivez.
A idéia da dignidade social é bem conhecida nas estratégias dos marranos quando buscavam resguardar o próprio referencial religioso através do sincretismo cultural. Na defesa dessa dignidade social estava incluído o dever, por parte de cada um desses indivíduos, de manter as práticas do judaísmo, mesmo que na clandestinidade.
Essas ações atuavam como um instrumento corporativo de resistência às barreiras sociais impostas pela instituição clerical e pela população da cidade. Essa forma particular de relação de cada um consigo mesmo é o que Paul Veyne[3] chama de estetização de si, ou seja, representa para o indivíduo a distinção entre o eu e o outro.
Por outro lado, ao incluírem as práticas do judaísmo nos cotidianos das famílias, estas, se consolidavam como hábitos e costumes, incorporando-se progressivamente pela repetição, e de forma “inconsciente” às normas e instituições reguladoras das relações sociais, aos corpos de saber e aos valores e crenças da população.


Daí defendermos a existência de alguns referenciais para reflexão sobre imagens, lugares, idéias e valores da cultura judaica, presentes no imaginário e no sistema cultural da população nordestina.
Antes de iniciarmos a parte discursiva das questões iniciais devemos lembrar que havia um princípio de organização da sociedade luso-brasileira baseada na distinção entre cristãos-velhos, cujas famílias já eram católicas antes da conversão forçada de todos os judeus portugueses em 1497, e cristãos-novos, judeus convertidos e seus descendentes. Este princípio foi mantido até meados do século XVIII. Aos descendentes dos cristãos-novos era imposto uma série de interdições sociais, econômicas e políticas. Era vedado o ingresso na carreira das armas ou em cargos públicos, entre outras limitações. O conceito de pureza de sangue era usado, no século XVI, para distinguir os que, racial e politicamente, enquadravam-se no ideal português branco e cristão-velho.

É interessante lembrar que, historicamente, os termos - cristão velho e cristão novo - retratam aspectos significativamente contraditórios e de radicais conseqüências. Nos primeiros anos da pregação do Cristianismo, as dissidências criaram a categoria dos cristãos velhos como referência aos cristãos de origem judaica [4] e cristãos novos, eram designados os de origem gentílica.
Também parece interessante estudar, de que maneira, na memória histórica da população nordestina no Brasil, ficou enraizado um conjunto de lembranças de acontecimentos reais e imaginários que se prolongaram até os tempos contemporâneos. São relatos que ficaram gravados na memória coletiva da população e têm como fonte a história oficial e o resultado das compilações tiradas da transmissão oral das lembranças históricas.
Sabe-se que a instauração da autoridade dos países que colonizaram as Américas, sobre as colônias, diferia no quadro político europeu. Os objetivos políticos, militares e sócio-culturais estabeleceram uma diversidade nos modos de ocupação das terras e dos bens a partir do século XVI.
Não nos deteremos nos fatos históricos que delimitaram a maneira como Portugal e Espanha reivindicaram a autoridade política sobre as novas terras que seriam conhecidas como Brasil. Interessa estudar, até que ponto existe relações entre o imaginário medieval, trazido pelos portugueses para o Brasil, e a cultura judaica ibérica, transplantada pelos conversos desde os primórdios do Brasil Português e seus resíduos preservados na cultura local.
Sabe-se que na vivência religiosa no século XVI, predominava o caráter ortodoxo medieval, inspirando as ordens religiosas a assumirem o papel apostólico e civilizatório. Primeiro foram os franciscanos e, mais tarde, a liderança coube aos jesuítas da Cia de Jesus, com papel importante na expansão do catolicismo no Brasil.
Os contatos interétnicos não eram admitidos pelo fundamentalismo religioso que sacralizava a pureza da fé e de sangue por parte da Igreja e apropriada pelo Estado. Apesar da Inquisição não ter se estabelecido no Brasil, as três visitas inquisitoriais (1591-1593, na Bahia, 1593-1595, em Pernambuco e 1618 em outras partes do Brasil) foram suficientes para alimentar o imaginário religioso que incluía nas heresias a punição por omissão nas denunciações de práticas judaizantes. Herança medieval, sem dúvida!
Assim, os conversos, para manter sua própria identidade, deviam manter-se no espaço público, como cristãos. Aparentemente transformaram sua cultura diante da crise provocada pelo movimento demográfico, conflitos internos nas comunidades dissolvidas, necessidades de adequação aos novos valores e crenças das novas sociedades. Entretanto, ao formarem as novas comunidades, tentaram recriar a cultura original, o que nem sempre foi possível.
As atitudes dos sefardim eram modeladas pela experiência de vida na Península Ibérica. E, em cada país para onde se encaminharam, redefiniram os conceitos de suas identidades nas relações que deveriam estabelecer, seja com os gentios ou com outros grupos de judeus que por ventura já existissem naqueles locais.
Encontravam na “reserva mental” a forma de driblar a vigilância inquisitorial e a dos vizinhos, para manter ativa, pelo menos, o que era tradição no judaísmo. Esse padrão de resistência consistia em artifícios de substituição mental de figuras cristãs por outra judaica. Assim relata Lipiner (1999:214):
...os cristãos-novos assistiam o novo culto nas igrejas, murmurando para si frases e expressões restritivas. Deveriam pronunciar mentalmente tais fórmulas, sem que se proferissem palavras com os lábios... No Brasil, durante a Visitação do Santo Ofício em Pernambuco, o Visitador, no dia 15 de Dezembro de 1594, registrou uma denúncia contra o cirurgião cristão-novo Fernão Soeiro que “à missa, quando o sacerdote alçava a Deus, alçando a hóstia sagrada” foi visto estar de joelhos e batendo nos peitos para dissimular, mas pronunciando “eu creio no que creio”...

Todavia, como iam se afastando do rigor dos ritos e das liturgias originais, no suceder das gerações, provocavam um sincretismo religioso diante do entrelaçamento com práticas e cultos cristãos. Mentalmente substituíam os elementos cristãos pelos judaicos. O Jesus era pensado como o Moisés dos israelitas. Era comum nas sentenças a referência de que “só criam no Deus dos Céus como judeu e a ele se encomendava com as palavras que conheciam por não mais saberem as orações judaicas”.
Os inquisidores estavam interessados nas chamadas práticas guardadas por obra, como aquelas guardadas apenas na vontade. Era comum nas sentenças constar declarações de que, por exemplo, na observância da Lei de Moisés guardava-se o sábado de trabalho sempre na vontade e em seu coração, e na obra quando podiam.
Neste trabalho serão analisadas algumas denunciações que representam historicamente os fatos político-religiosos que regulavam a vida da América Portuguesa e, complementando, será feita uma análise dos conteúdos referentes as práticas judaizantes contidas nas denúncias.
O material referente aos relatos primários será submetido à crítica quanto ao conteúdo ideológico no que se refere ao imaginário sobre identidade judaica no panorama atual dos significados de “ser judeu”; será feito um confronto entre o relatado, o referencial histórico e o referencial de costumes essencialmente judaicos.
O hiato do tempo correspondente ao silenciamento da memória judaica nos séculos seguintes à restauração portuguesa será contextualizado, espacial e temporalmente, respeitando-se a natureza de fenômenos relativos ao inconsciente coletivo, alimentados pela “reserva mental” judaica. Na intimidade das famílias podem ser identificados os elementos e práticas, originais e/ou sincretizadas do judaísmo.
Este recurso metodológico foi inspirado no procedimento adotado por Elias Lipiner em sua pesquisa que resultou na obra Os Judaizantes das Capitanias de Cima. Este historiador se apóia na prática inquisitorial que enfatizava a pressão sobre as famílias para, através do terror dramatizado das inquirições, obter as denúncias que terminariam nas fogueiras patrocinadas pelo Santo Ofício. Também o Prof. Nathan Wachtel, da Escola de Altos Estudos de Paris, vem trabalhando com semelhante estratégia com importantes resultados sobre a vida judaica no Brasil, nos séculos coloniais.
Dessa forma será possível compreender os relatos reunidos como recurso metodológico de pesquisa e legitimar o diálogo proposto entre o fato histórico e seu referente cultural identificado nos hábitos e costumes preservados de forma atávica, entre a população nordestina.

Chama a atenção manifestações de fenômenos simbólicos singulares, através dos quais, vai se cristalizando o imaginário do povo sobre: ditos populares, folclore, ritos, cultos, incluindo-se a polissemia dos cultos populares do catolicismo. Como manifestações coletivas, não é de estranhar a presença de fenômenos resultantes de um sincretismo religioso-cultural afro-católico-indígena, também com influências cristã-nova e judaica, dispersas no espaço nacional. Muitas vezes, são rotuladas como manifestações folclóricas ou são vistas como resíduos das culturas dos referidos grupos étnicos. Escutei um comentário, numa dessas entrevistas.
...tinha uma senhora de 97 anos que morava na beira da estrada. Ela ficava olhando as pessoas que passavam e dizia: já vai para a sinagoga?
Outro dos meus entrevistados revelou:
Eu lembro que na minha família os homens é que eram mais voltados para as rezas e tinham um livro de rezas que pertenceu ao irmão da minha bisavó materna. Esse homem era uma espécie de curandeiro. Ele e minha bisavó eram os únicos letrados, sabiam ler e escrever. Ela era parteira na cidade e ele era uma espécie de médico.
Então eles rezavam, eles tinham um grupo de rezas sempre rezavam em oratórios, dentro de casa. Não iam para a Igreja. E a minha bisavó morava vizinha a igreja. Eles preferiam rezar em casa e ficavam olhando para o céu. E os homens da minha família sempre rezavam olhando para o céu.

Portanto, nessa condição, para falar de cultura nordestina brasileira, é preciso focalizar o fenômeno da interculturalidade no cotidiano físico, simbólico e imaginário da população, nessa região do país, vistos nos modos de viver: alimentação, vestuário, habitação, práticas de cura, ritos da morte, relações de parentesco, divisão do trabalho e, ao mesmo tempo, devem ser analisadas as crenças, os cantos, as danças, os jogos, a caça, a pesca, o fumo, a bebida, os provérbios...
Estes modos de viver estão fundados em sincretismos sócio-culturais-religiosos, desdobrando-se em manifestações dotadas de seus próprios significados e, ao mesmo tempo, assimilando os elementos de culturas circundantes.

Ao invocarmos o tema para o espaço da etno-história é para relacionar o fenômeno do marranismo, amplamente estudado por historiadores na Universidade de São Paulo, aos estudos sobre a memória de grupos que permanecem como ilhas de resistência cultural, espalhadas por toda a região do nordeste do Brasil. Historiadores e antropólogos vêm valorizando registros sobre o assunto e, numa alternativa metodológica de pesquisa, trabalham com uma mediação entre sincronia e diacronia em nome de uma aproximação entre as respectivas abordagens.
É possível encontrar um núcleo narrativo no mundo dos denunciantes dos tempos inquisitoriais, construindo-se uma matriz explicativa para o fenômeno do “marranismo”, até hoje persistente. É nesse cenário que se busca compreender os cotidianos de diferentes grupos étnicos que se incorporavam em novas sociedades como resultado, primeiro, de um deslocamento dentro da Europa, e depois da Europa para as Américas.
O estudioso da cultura judaica no Brasil, busca traços desse passado e se dá conta de que para a reprodução daquelas estruturas precisa olhar as margens da sociedade de outrora, precisa reencontrar-se com o tempo de seu objeto de estudo através do próprio agente da história: os que atualmente se identificam com os antigos marranos.
Precisa tomar como referência os caminhos já trilhados por historiadores e antropólogos que se dedicam ao que sobrevive das antigas oralidades ocultas e que aparecem sob formas de vestígios disfarçados, triunfando sempre que algum fato estimula sua emergência. Precisa valorizar a busca das tradições, das mudanças, continuidades e descontinuidades da sociedade marrana e a memória do cotidiano daquelas pessoas. Deve se interessar pelos estudos das permanências de uma cultura judaica ibérica, no quadro da comunidade judaica colonial brasileira, nas condições de aculturação da população marrana transladada de Portugal para o Brasil, nas representações simbólicas da população miscigenada nordestina e de suas transformações. Os pesquisadores da cultura judaica argumentam que estamos no limiar de novas respostas sobre a continuidade e permanência dos judeus no Brasil.



Narrativas e a Memória judaica em Pernambuco

Como ponto de partida vejamos o que se conta... e quem conta... na Primeira Visitação do Santo Ofício às Partes do Brasil. Denunciações e Confissões de Pernambuco 1593-1595 Coleção Pernambucana Vol. XIV. Recife: FUNDARPE. 1984. (p.75 Em registros de 16 de novembro de 1593).


... e denunciando disse que averá vinte annos que morãodo em Camaragibi Branca Dias christãa nova defunta molher de Diogo Fernandes de Camargibi e outro Diogo Fernandes genro della que ora está em Lixboa mercador na rua Nova e Duarte Fernandes irmão do ditto Dioguo Fernandes christãos novos que estavão por feitores de Bento Dias Santiago nos seus engenhos do dito Camaragibi nesta Capitania elle denunciante ouvio dizer em pubrica fama jeralmente por todos, honrados, altos e baixos desta terra e por ho mais povo e gente della, com muita frequentação e escandallo que os dittos Branca Dias e seu genro Diogo Fernandes e Duarte Fernandes viviam no ditto Camaragibi na lei judaica e faziam suas ceremonias e faziam a esnoga e que com elles se ajuntavão e faziam o mesmo Franscisco Pardo christão novo que ora he lavrador e morador no mesmo Camaragibi e outros muitos christãos novos que lhe não lembrão ...e pello ditto Simão Vaz om os dittos parentes e com outros que elle não sabe todos christãos novos fazem no mesmo Camaragibi, e faziam com o ditto Manoel Vaz quando aqui estava a esnoga no ditto Camaragibi e as dittas ceremonias judaicas...

O sentido das acusações aponta para o fenômeno do marranismo, visto como uma forma de resistência cultural e como rito no sentido lato da palavra (músicas litúrgicas, celebrações do shabat, alimentos). Há nesses ritos uma história subjacente que tanto é rito como culto e que consiste em um esboço de instituições. Trata-se de uma história contada por pessoas que viveram os fatos e/ou foram contemporâneas aos fatos. É o caso dos relatos que ficaram registrados pela própria Igreja Católica nas denunciações por práticas judaizantes com descrições detalhadas de costumes e locais onde viviam os acusados.

Uma análise do conteúdo dessa denúncia e de tantas outras mostra, em primeiro lugar, a marginalidade na situação colonial da categoria de pessoas reconhecidas como cristãos-novos e o peso decorrente desse pertencimento. Na condição de objeto de denúncia, a lei judaica, suas cerimônias e a “esnoga”, estavam fora do aceito pela sociedade, logo passível de punições decididas pelo Tribunal do Santo Ofício em Portugal. Nesse sentido, o desejo de preservar a própria cultura estava condicionado a estratégias ocultas aos olhos de vizinhos e das autoridades religiosas. Esses procedimentos envolviam a seleção de atributos culturais do judaísmo sendo que, o mais importante deles, estava contido nos ritos do shabat e nas comemorações das festas marcadas pela lua nova de agosto.
Em registros de 16 de novembro de 1593, pg. 215
...averá quarenta annos pouco ou menos que nesta villa morava Anrique Mendes mouco cristão novo que depois foi pera Porto Seguro o qual era costumado todas as luas novas de agosto hir com sua molher Violante Rõiz e com toda a mais casa e familia em carros emramados e com festas desta villa ao lugar de Camaragibi que está daqui quatro ou simquo legoas e laa se estavão hu e dous meses, e era fama pubrica nesta terra geralmente ditto por todos assim nobres o principais como mais gente e povo que no ditto Camaragibi avia esnoga onde se ajuntavão os judeus desta terra e faziam suas ceremonias e que nas ditas luas novas de agosto iam ao ditto Camaragibi a scelebrar a festa do jejum do Gujppur ...
Na memória histórica do povo judeu ficou enraizado um conjunto de lembranças de acontecimentos reais e imaginários que se prolongaram até os tempos contemporâneos, sob a forma de narrativas míticas. Esses relatos ficaram gravados na memória coletiva judaica e têm como fonte a Bíblia - os cinco livros de Moisés e os escritos dos Profetas. O Midrash, resultado das compilações tiradas da transmissão oral das lembranças históricas, emite valores básicos para construção da identidade judaica, ficando impressos na consciência histórica dos judeus. Trata-se da memória textual ou memória escrita que encontra sua expressão concreta através dos ritos.

Esses relatos, com o tempo vão perdendo seu caráter histórico e se transformam em acontecimentos míticos. O conteúdo das narrativas, passados de geração a geração, são recontados em múltiplas versões e aceitos como narrativas verdadeiras dos acontecimentos.
Nos tempos bíblicos era dever do homem fazer uma peregrinação até o Templo em Jerusalém. Assim como o estudo da Tora é um dos fundamentos do judaísmo, a tradição na Festa de Shavuot, entre os judeus mais religiosos é passar a primeira noite da festa, até o amanhecer, estudando compenetradamente textos da Torá, do Talmud e da Cabala. Faz-se a leitura pública do Decálogo, com toda a congregação de pé, lembrando a Revelação do Sinai. No tempo colonial brasileiro os marranos iam de Olinda para Camaragibe para os cultos clandestinos do judaísmo. Camaragibe também é conhecido como Terra das Sinagogas.

Com base nas narrativas bíblicas chegam até nós os costumes e tradições das três Festas da Peregrinação (shalosh regalim): Pessach (colheita da cevada; Festa do Pão Ázimo) seguindo-se de Shavuot (colheita do trigo; Festa das Semanas) e Sucot (colheita das uvas e outros produtos; Festa da Colheita). Essas festas têm uma dimensão histórica de comemoração da libertação do Egito e do Êxodo, mas também comemoram as três estações de colheita do ano agrícola na terra de Israel.
De acordo com o calendário hebraico lunar (luach ha-shaná) o mês de Nissan marca o início da primavera quando seria comemorada a primeira das três Festas da Peregrinação – Pessach (Festa do Pão Ázimo).
Uma das classificações utilizadas pelos historiadores da religião sobre símbolos apóiam-se na maior ou menor aproximação com as manifestações religiosas sobre a visão do universo. Assim é que a lua, entre os símbolos celestes, aparece como a manifestação dramática do tempo. Ao contrário do sol, que sempre aparece igual, com exceção dos eclipses, a lua é um astro que cresce, diminui e desaparece como se estivesse submetido à temporalidade e à morte. A lua aparece como a primeira medida do tempo.

Existem várias referências na Bíblia de que naquela época, a lua nova era uma comemoração popular. Sob a denominação de Rosh Chodesh (cabeça do mês) tem um papel significativo na tradição religiosa judaica.
Na tefilá[5] do dia de lua nova a oração é feita seguida de um halel (louvor que denota um grupo de salmos). Também a Torá é lida e acrescenta-se um mussaf (acréscimo em hebraico). A Amidá, principal oração proferida pela congregação de pé, é acrescentada com alegria e no shabat que precede a lua nova, ela é anunciada.
A lua nova marca o calendário judaico que consiste em doze meses, sendo que alguns têm 29 ou 30 dias, com variações que seguem uma fórmula fixa. Anualmente, para compensar a diminuição dos onze dias intercalam-se um mês extra no 3o. 6o. 8o. 11o.14º, 17o. e 19o. anos de cada ciclo de dezenove anos.

Hoje, pesquisando a oralidade nas manifestações culturais no agreste e sertão nordestinos, reunimos depoimentos que fazem parte das lembranças dos mais velhos. Os mais jovens são instigados pela estranheza de certos costumes vivenciados na família. Basta escutar o que se conta em muitas famílias cujas origens estão localizadas no sertão. As histórias nos chegam através de indagações sobre costumes identificados, que aparentemente são estranhos em relação aos hábitos da vizinhança.
Questionado sobre a origem de sua percepção de uma possível ascendência judaica, L.O. 25 anos (entrevistado em 2003 ), respondeu:

...olha, é quase algo cabalista, sabe? É um chamado...você ouve um chamado, não sabe de onde.. Mas, não é do nada, você nasce com aquela inclinação... Você tem uma alma judaica. Desde criança eu sempre fui envolvido com o judaísmo e olhe, que a minha mãe é católica e o meu pai também... Aos 15 anos já tinha lido muita coisa. Aos 17 comecei a praticar muitas coisas, a só comer a comida casher, sabe. Eu me aproximei do judaísmo sem nunca ter conhecido um judeu.

A inquietação sobre sua origem levou-o a buscar contato com os parentes mais velhos da sua família que viviam mais isolados em cidades espalhadas pelo sertão. Nesses contatos vai juntando os elementos significativos para construir a sua identidade judaica através do marranismo. Assim, ele contou:

...O tempo foi passando e eu continuei acreditando na coisa que eu acreditava. Quando eu conheci a minha tia avó, uma parenta mais velha do meu pai, eu pedi para ela me contar algumas coisas. Na época ela tinha 92 anos. A lembrança maior que ela tinha do pai dela, o meu bisavô, era que ele morava num sítio, no interior e que todos se juntavam na mesa, em alguns dias da semana. Todo mundo se vestia bonito e era uma algazarra. Todo mundo se punha ao redor da mesa, muito bem colocado para o jantar, com toalha branca e o pai ficava do lado de fora da casa, esperando a primeira estrela no céu. Quando saia a primeira estrela ele entrava e todo mundo rezava e cantava numa língua que não era o português, ela dizia. Eu fiquei arrepiado ao ouvir essas palavras...

Na liturgia do shabat, existe o costume, conhecido como Kiddush Levana ou Santificação da Lua Nova. Todos os homens reunidos para o serviço de finalização do shabat, entre o terceiro e o décimo sexto dia do mês judaico, uma vez por mês agradecem a Deus a renovação dos meses. Entretanto essa oração não é feita no começo do mês, mas próximo à metade deste, quando a Lua está cheia. O astro estando visível, a prece é realizada do lado de fora, onde podem vê-lo.Como se sabe, assim é comemorado o shabat. É uma noite especial. Após preparativos ao longo do dia, quando a casa é limpa e preparada para receber o shabat, a família se reúne para um jantar diferente.
Além dos mais conhecidos – jogar fora a água acumulada em casa quando morria uma pessoa, a interdição para comer carnes de coelho, peixes sem escama, carne de porco, casamentos endogâmicos, eles contam:
...quando morria uma pessoa na nossa família, minha avó contava que durante um mês se comia numa mesa baixa de pernas curtas, onde se deitava o morto e todos sentados no chão...

...na casa do meu avô, quando morria uma pessoa, os homens não faziam a barba durante um mês..

“identidade” ou “identidades judaicas” em Pernambuco

Hoje, no Recife, é possível identificar quatro categorias de judaísmo:
o judaísmo ortodoxo, representado pelo Beit Chabad;
os judeus ashkenazitas, seguindo uma linha liberal, apoiados muito mais no sionismo do que na religião;
os marranos convertidos ao judaísmo;
e por fim, os que se auto-identificam como marranos, porém recusam a conversão.

As duas últimas categorias existentes na cidade do Recife surgiram de um movimento formado por pessoas que se auto-identificam como judeus marranos. Anteriormente pertenciam aos grupos de católicos ou protestantes e agora reivindicam o retorno ao judaísmo. Mas não concordam com a conversão, conforme exige a ortodoxia judaica. Manifestam o desejo de serem aceitos como judeus na condição de retornados, pois, segundo eles, não lhes cabe a responsabilidade de terem sido afastados do judaísmo, mesmo que circunstancialmente, em períodos anteriores.
Eles buscam, inclusive, a identidade religiosa em torno de atributos culturais judaicos apreendidos em estudos formalmente organizados com apoio de líderes da comunidade. Participam de grupos já institucionalizados e, por estarem relativamente integrados à comunidade judaica do Recife, de forma consciente, estimulam essa revisão na historiografia pernambucana e judaica. Individualmente, se apóiam em fontes de significados encontrados em práticas remanescentes nas lembranças familiares sobre “costumes estranhos”, organizados em torno de uma identificação simbólica. Coletivamente, “constroem” a identidade marrana a partir dos dados fornecidos pela história, pela memória coletiva, pelas lendas e tradições, pelas revelações de caráter religioso.
A elaboração dessa “nova” identidade pode ser explicada através do entendimento de Castell [6] sobre a construção de identidades, como
...o processo de construção de significado com base em atributo cultural, ou ainda, um conjunto de atributos culturais inter-relacionados, o(s) qual(ais) prevalece(m) sobre outras fontes de significado.

Vejamos como as fontes de significados do judaísmo foram internalizadas por H.F.S. (convertida) para construir a base da identidade marrana sobrepondo-se à identidade religiosa anterior:
...eu perguntava a minha avó, porque nós fomos criados por ela, então eu perguntava porque os costumes de nossa família eram tão diferentes dos costumes de nossos vizinhos. ...Não se comia carne de porco, nem mariscos, não se comia galinha de cabidela... Minha família no interior tinha certa condição financeira, não era por causa do dinheiro, era porque a minha avó não comia... Ela dizia que não se varria a casa de dentro para fora e tinha que se juntar o lixo no meio da casa. Tinham também os ritos de morte, que também eram muito estranhos...Não se comiam certos alimentos durante um período após a morte de uma pessoa. Não se chegava do cemitério e entrava diretamente em casa. Tinha que entrar pelo fundo da casa, tomar banho...Coisas muito estranhas, mas que para mim eram normais, mas que as outras pessoas não faziam, não tinham aqueles costumes...

...quando eu tinha 21 anos a minha mãe disse para mim, a gente comentando:
“Você sabia que nós somos descendentes de judeus?” Eu respondi: “De judeus? Que coisa estranha”. Ela confirmou: “Sim, de judeus”. Eu perguntei porque? E ela: “Porque é”. Mas minha mãe tinha um jeito estranho de falar. Eu não liguei.
Uns dias depois eu decidi que iria perguntar onde era essa “Igreja”. Eu queria saber onde era. Nem sabia que se chamava “Sinagoga”. E fui bater na Martins Junior. Isso foi em 1970. Quando eu casei, eu tinha uma desconfiança tão grande que nem batizei meus filhos, mesmo sendo a minha família muito católica.
As pessoas ficavam dizendo que eu deveria batizá-los senão ficariam amaldiçoados, ficariam vendo coisas, enfim, eu não batizei. Não achava correto.

É interessante notar que hoje, assim como nos tempos da formação da comunidade Zur Israel, no século XVII, pouco a pouco, surgem grupos de diferentes partes da região nordestina interessados em encontrar, em suas genealogias, os elos perdidos com o judaísmo no passado colonial.
Nesse ponto lembramos que os cristãos-novos, no processo de construção de nova identidade no Brasil português, tomavam por base atributos culturais do judaísmo sefardi, de maneira oculta e do catolicismo, no espaço público, na condição de atores na sociedade colonial portuguesa.
Os significados gerados pelo inter-relacionamento do conjunto desses atributos, tanto na condição de indivíduos, como na de membro da sociedade geral, aparecem no fenômeno de sincretismo cultural, que passa agora a ser conhecido como marranismo.
Trata-se de um fenômeno que teve a sua gênese nas tensões e contradições por conta da multiplicidade de identificação, tanto na auto-representação do cristão-novo quanto na forma pela qual a sociedade os representava. As ações sociais por eles vividas também fazem parte desse fenômeno, uma vez que, os papéis que lhes eram atribuídos, eram definidos e normatizados pela estrutura colonial (são freqüentadores da Igreja, vizinhos, parentes, pais, mães, exercem ocupações, são artistas...). O desempenho desses papéis dependia das articulações para adequação dos diferentes atributos culturais aos quais estavam condicionados.
Desse modo, até mesmo a antroponímia era fator de tensões psicossociais. Por razões impostas pelo decreto de expulsão dos judeus de Portugal em dezembro de 1496, o batismo forçado de todos os que pretendiam sair como forma de preserva-los na economia do Reino, fez-se acompanhar de mudança de nomes no ato do batismo coletivo. Esperava-se que essa medida facilitaria o desaparecimento dos ex-judeus, uma vez que, estariam misturados entre a população geral.

Inúmeros processos estudados por Lipiner [7] sobre a época dos cristãos-novos revelam que eram adotados nomes tipicamente cristãos e, às vezes, até mesmo de maneira ostensiva: Firma-Fé, Santa-Fé e Cruz. Essa alteração de nomes ocultava uma carga psicológica e social de efeitos dramáticos. Por isso, quando conseguiam sair de Portugal, no lugar de refúgio, substituíam o nome cristão por outro de origem judaica, dos quais já eram portadores secretamente, traduzindo, pelo menos, o primeiro nome pessoal, permanecendo o sobrenome de família anterior [8] : Isaac Aboab da Fonseca, Saul Levi Mortera, Moishe Teixeira de Matos, Daniel Levi de Barrios.

Sobre os significados em torno de nomes próprios, H.F. também lembra:
...como eu tinha a suspeita de alguma coisa diferente, fui a Sinagoga. Lá, o Sr. S.G. me recebeu e perguntou o que eu queria. Eu respondi que queria conhecer, porque a minha mãe disse que nós tínhamos origem judaica. Aí ele perguntou qual era o nome do meu avô. Eu disse: “André de Castro Fonseca” e o nome da minha mãe era Yone e da minha tia era Celmi. ”Aí ele disse: Engraçado, seu avô deu aos dois filhos nomes hebraicos. Yone, vem de Yonar e Celmi vem de shalom, que quer dizer paz.”. Ele então perguntou: “Você sabia que o primeiro rabino das Américas se chamava Isaac Aboab da Fonseca. Castro e Fonseca são nomes de marranos.”





Reflexões finais

Pensando nas questões inicialmente lançadas lembramos que existe uma zona entre o passado e o presente da comunidade judaica do Recife (séculos XVI-XVII e séculos XX-XXI) que guardou elementos de uma memória coletiva silenciada por circunstâncias históricas. Com a reabertura da Sinagoga Kahal Zur Israel, em 2001, como museu da cultura judaica em Pernambuco e a instalação do Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco no mesmo prédio, a percepção de uma divisão do tempo vem se consolidando em função de um antes e um depois dos eventos que marcaram a formação de duas comunidades na região.
Os fatos do passado sobre a vinda dos cristãos-novos [9] e cripto-judeus e dos sefardim[10] para o Brasil, após os acontecimentos da Diáspora de 1492, da Espanha e de 1497, de Portugal são conectados ao mundo contemporâneo, encontrando no presente, a comunidade formada no século XX por judeus ashkenazim [11]. Foi possível elaborar um roteiro cultural judaico para as cidades de Recife, Olinda e Camaragibe, organizado com os fragmentos de um passado, aparentemente não relacionável ao presente, mas que permaneceram como ilhas submersas numa história a ser revisitada.
A idéia foi trabalhada na perspectiva da preservação, intervenção e manutenção de um patrimônio histórico cultural para disponibilizá-lo ao trade turístico. Inclui, também uma finalidade social, no sentido da inserção desses novos
conhecimentos em propostas pedagógicas de atualização do saber da história e da cultura local. Além do caráter didático, sua utilização como fator de atração para o turismo local valoriza a organização de uma memória reveladora de aspectos de um passado não tão distante no tempo e bem próximos, num espaço.
No roteiro destacam-se como marcos dos passos perdidos dos judeus em Pernambuco, o Engenho Camaragibe, centro espiritual judaico organizado por Diogo Fernandes e Branca Dias em terras pertencentes a Bento Dias Santiago, rico cristão-novo; a casa de Branca Dias em Olinda, onde ela vivia grande parte do tempo; a Casa de Guarda dos Judeus (Excubiae Iudeorum), antiga fortaleza que abrigou, durante um curto período uma milícia de soldados judeus; a Ponte Maurício de Nassau, construída por Baltazar da Fonseca, cristão novo; a antiga Ilha Cheira-Dinheiro, atual pontal do Pina, cujas terras pertenciam a André Gomes Pina, rico cristão-novo que lá se instalou pela proximidade da Sinagoga no Bairro do Recife; a casa de Duarte Saraiva, rico comerciante e líder da comunidade sefardi , em cuja casa, realizavam-se os cultos religiosos judaicos, antes da construção da Sinagoga Kahal Zur Israel. E, finalmente, a própria Sinagoga Kahal Zur Israel, localizada numa área conhecida atualmente como o Recife Antigo.
Somos instigados a olhar cada um desses espaços ao mesmo tempo em que se observam mapas antigos, ilustrações que mostram como eram antes. A atmosfera judaica de cada um deles sobrevive nas velhas histórias. Seus habitantes não foram embora sem avisar, apenas se esconderam de deuses estranhos.
Os passos perdidos dos judeus na historiografia brasileira são agora recuperados, porque eles referenciaram e estruturaram uma memória coletiva, definindo o seu lugar na História e no quadro espacial onde eles ocorreram. A memória assim valorizada não aceita o desenraizamento das origens e conseqüências do movimento migratório, primeiro dos cristãos-novos, depois o dos judeus portugueses de Amsterdam, desde o século XVI.
Sim, porque eles vieram para ficar. Em Pernambuco, suas vivências foram como âncora e plataforma da identidade sefardi. Viveram paradoxalmente seus ritos e

costumes entre as práticas sincréticas e/ou clandestinas. Silenciaram aparentemente enquanto os desajustamentos dos tempos e dos homens nas sociedades, medieval e moderna, desmanchavam valores e tradições. Todavia, foram suficientemente sólidos como grupo étnico-religioso para se lançar no futuro, trazendo do passado resíduos culturais para, mais uma vez, com eles, recriarem suas tradições.



Bibliografia
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Castells, Manuel. O Poder da Identidade. São Paulo: Ed.Paz e Terra S.A. V.2. 2001. 3a. ed.
Chevalier, Jean. Gheerbrant, Alain. Dicionário de Símbolos. 17a. edição. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2002.
Goldberg, David J. e Rayner, John D. Os Judeus e o Judaísmo. Rio de Janeiro: Xenon Editora e Produtora Cultural. 1989
Izecksohn, Isaac. Os Marranos Brasileiros. São Paulo: Editora B’NAI B’RITH. 1967
Kaufman, Tânia Neumann. Passos Perdidos, História Recuperada. A Presença Judaica em Pernambuco. Recife: Ed. Bagaço. 2a. ed. 2001
Laraia, Roque de Barros. Cultura. Um Conceito Antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1988. 3a. ed.
Lévi-Strauss, Claude. Raça e História. Lisboa: Editorial Presença. 1996
Lipiner, Elias. Os Batizados em Pé. Lisboa: Ed. Vega 1a. edição. 1998
Novinsky, Anita. Cristãos Novos na Bahia. São Paulo: Perspectiva, Ed. Da Universidade de São Paulo, 1972.
Oliveira, Roberto Cardoso de. O Trabalho do Antropólogo. Brasília: Paralelo 15; São Paulo: Editora UNESP, 2000
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Rowland, Robert. Antropologia, História e Diferença. Alguns Aspectos. Portugal. Porto. Edições Afrontamento. 1997
Schwarcz, Lilia K. Moritz e Gomes, Nilma Lino. (Org.) Belo Horizonte: Autêntica Editora. 2000.
Unterman, Alan. Dicionário Judaico de Lendas e Tradições. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. 1992


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[1] Doutora em História, Mestre em Antropologia, Especialista em Sociologia.
Docente do Departamento de Ciências Sociais da UFPE
Diretora do Arquivo Histórico Judaico de Pernambuco.
Coordenadora do Grupo de Estudos sobre Judaísmo / UFPE
[2] Denunciações e Confissões de Pernambuco 1593-1595. Coleção Pernambucana. Vol. XIV. Prefácio de José Antônio Gonsalves de Mello. FUNDARPE.1984
[3] Veyne, Paul, e outros. Indivíduo e Poder. Lisboa: Edições 70.1987
[4] Do ponto de vista judaico, a primeira comunidade cristã, a de Jerusalém, era formada por judeus de estrita observância; estes judeus-cristãos, pretendiam encontrar adeptos apenas entre os judeus. Com a destruição do Templo em 70, é que a divulgação dos novos princípios se estendem para a diáspora – Síria, Ásia Menor e Grécia – quando surge o verdadeiro cristianismo. Segundo consta no Novo Tesdtamento, São Paulo dispensa dos prosélitos cristãos os mandamentos da Lei e da circuncisão, mudando assim o rumo da história.
[5] Tefilá – significa simplesmente oração. Refere-se ao culto na sinagoga e não no Templo. É uma seqüência específica de bênçãos divididas em três grupos: a primeira, deve ser recitada com cavaná (concentração da mente); a segunda trata do poder de Deus; a terceira celebra a santidade de Deus e quando recitada publicamente é conhecida como kedushá (santidade).
[6] Castells, Manuel. O Poder da Identidade. V.2.São Paulo: Editora Paz e Terra.2001. p.22
[7] Lipiner, Elias. Os Batizados em Pé.
[8] O costume antigo de colocar na criança, além do nome profano para efeito de registro civil, um outro bíblico para efeitos da religião judaica, teve um significado mais forte entre os marranos.
[9] Cristãos-novos - judeus convertidos de maneira forçada ao cristianismo e cripto judeus – os cristãos-novos que praticavam o judaísmo de forma disfarçada.
[10] Sefaradim ou sefarditas - Oriundos de Sefarad (nome hebraico da Espanha). Judeus provenientes da Espanha (Sefarad, em hebraico) que, após o decreto de expulsão firmado pelos reis católicos, em 1492, emigraram para Portugal e, em seguida, para os Países Baixos, Inglaterra, ou para o Norte da África, o Império Otomano, Itália e Sul da França. Falam o ladino ou judeu-espanhol. Variantes: sefardi, sefardita, sefaradita. O outro grupo é representado pelos que procederam da Alemanha – os Askenazim.
[11] Habitantes de Ashkenaz – Alemanha e falavam a língua ídiche (judeu-alemã).