Friday, August 18, 2006

Conto de Verão

A primeira bruxa

Paulo Ferreira da Cunha

Palácio de Cristal

A minha infância teve uma idílica rotina que me deixou livremente crescer e transgredir, com a certeza de que, no fundo, tudo seguiria o mesmo ritmo. Era um ritmo de afectos seguros, de lugares certos, de pessoas conhecidas, de eventos sabidos, sazonais. Um desses eventos, e prolongado, era a chamada “feira popular” no Palácio de Cristal. De popular reflicto agora que tinha o nome, porque era afinal muito selecta: naturalmente selecta, pois ninguém era impedido de entrar. Mas essa questão sociológica é problema menor na trama literária, e não vindo ao caso num inocente conto de verão, que é crónica do passado. Curioso como crónica pretérita se volve em conto actual.

Era então um tempo em que a cidade se enrolava já de sol, que ia em crescendo, até chegar a época plena da praia – em que o calor e a luz explodiam, permitindo-me finalmente a autorização familiar de ingestão de gelados. Ritual profundo e complexo, de corpo e de espírito, pois cada sorvete vinha então acompanhado de uma miniatura de plástico de algum dos meus heróis da banda desenhada, desde logo o Tim Tim e seus amigos e oponentes. Como a banda desenhada correntemente lida então (essa, e muito a série Black & Mortimer, um pouco mais tarde) era mesmo formativa, ingeria-se a um tempo frescura e simbólica promessa de cultura.
Uma preparação do verão de praia (e doce intróito de férias) era esse passeio público do Palácio, de árvores e banquinhos, com barraquinhas a bordejar a avenida. Das Tílias, se chamava. E para as emergências lúdicas face a essa promenade mais adulta, que parava em esplanadas e se perdia gostosamente em conversas, tão fin-de-siècle de século já passado, tão burguesmente portuense, para as emergências pueris havia um parque infantil.

Começara por ter até patinagem – mas depois limitou-se a escorregões que me pareciam altíssimos, baloiços que me levavam às alturas, e uma roda mágica de cavalinhos, em que me sentia mesmo cavaleiro – cirandando veloz ao ponto de ficar com inspiradas tonturas.

O Cavalinho Azul

A roda dos cavalinhos era caprichada; uma peça de museu ao ar livre: havia equídeos com personalidade, de cores próprias e arreios específicos. Nunca gostei dos luxosos brancos, nem dos tristonhos castanhos; hesitava em montar os negros, misteriosos e altivos… Acho que imaginariamente ia aos céus num inexistente cavalo azul, que eu re-pintava, como é permitido aos meninos fazerem, com pincéis de pura imaginação.Vi mais tarde a decadência dessa roda de cavalinhos, e não vo-la conto. Foi nesse tempo cinzento, em que não mais é permitido montar pégasos azuis. Só voltei a ter um Pégaso no quarto dos meus filhos. Mas já não era azul… A cor era já deles, qualquer que tenha sido a do brinquedo que comprei.

Férias mesmo Grandes

Voltemos ao enorme verão de todos os verões, antes e depois de grandes praias e termas, nesses anos da Idade do Oiro, em que as férias eram mesmo grandes (de Junho a Outubro, na verdade). Que inveja deveriam ter as crianças e os jovens de hoje, crianças presas em escola sem graça e sem saber, caserna / fábrica antecipada… E, mais triste: desconhecendo como era a vida antes, jamais sairão da caverna, sem reivindicarem o direito a sonhar e a viver… como nós vivemos. Desçamos ao concreto. Acontece que as crianças sadias comem. Gostam de comer. É seu privilégio não se preocuparem com colesterol e glicose, tensão arterial e ácido úrico (hoje é que exageram). Nessa altura, comia-se com a inocência de Adão no paraíso: ele havia os lanches, de chocolate coma-com-pão, groselha, ou sumol…ou o tentar a fortuna com os “furinhos”.

Sorte aos Chocolates

Os furinhos eram um ritual solene e grave. Uma caixa de madeira pintada normalmente de vermelho, contendo uma rede de múltiplos círculos desenhados em cartões amovíveis, convidava-nos ao jogo. Risco, mas sempre com rede. Por um preço que hoje desafia a imaginação – baratíssimo, apesar da inflação: creio que entre vinte e cinco tostões e cinco escudos ou pouco mais (números com sabor de moedas arcaicas hoje) – podíamos perfurar um círculo desses, com um estilete de aguçado ar sinistro – como convinha – caindo na parte inferior da caixa, numa janelita de todas as esperanças, uma bolinha de cor verde, amarela, azul, vermelha ou doirada, que correspondia à magnitude e qualidade do chocolate ganho. Saíam-me normalmente azuis e vermelhos, prova da minha sorte moderada. Mas eram uma delícia dos deuses. Minha Mãe um dia ganhou um doirado: coube-lhe assim uma engalanada caixa de bombons, bela prenda pelo preço, mas maus bombons em absoluto. Vicissitudes dos jogos de azar!

Idade do Oiro

Era contudo um tempo sem azares, um tempo em que brincávamos sem medos. Talvez ingenuamente, mas… se há-de ser esse o preço da felicidade!?... Não sei. Hoje, como convém à minha idade e condição, acho que mais vale sofrer e lutar lucidamente. Pensamos o que convém que pensemos em cada momento? O que menos nos dói? Ou, simetricamente, o que, tudo pesado, provoca mais prazer? Talvez Bentham o explicasse. Eu não. Menos ainda num conto de verão.

Então era diferente. Não havia predadores escondidos, bandidos encapuçados, nem roubos, nem violações, e mesmo os suicídios eram censurados das notícias dos jornais. Para uma criança, mais poupada ainda a tudo, não havia ali senão pessoas de bem. Claro que nos diziam para não acompanhar gente grande que se abeirasse de nós, e insistiam que não aceitássemos guloseimas, creio que já com medo de serem potencialmente drogadas: mas era uma precaução platónica. Droga era coisa de vaga importação, e nem sequer explicitamente mencionada. Não se conheciam raptos nem viciamentos no parque – e mesmo fora dele tudo isso era coisa do estrangeiro. Mesmo os tradicionalmente liberais e democratas portuenses, em política ferrenhamente do contra, tinham feito no quotidiano a vontade ao ditador, e viviam mesmo habitualmente. Até numa família muito politizada como a minha (tivemos a casa cercada, meu avô não escapara à prisão política, na temível PIDE), uma coisa era o sal da política, e outra esse sol quotidiano, sem sombras, sem pecados, sem crimes, sem sobressaltos. E contudo comia-se oposição ao almoço e ao jantar.Vamos à pequena trama, que não quero quedar por drama estático e acto único.

O Uivo da Bruxa

Um Verão, não sei que idade teria, mas era pequeno, naturalmente atraído pelas coisas do oculto, atrevi-me a entrar na tendinha de uma bruxa. Havia disso no parque, sim senhor. Prova de que ao poder de então não fazia mossa alguma o que deveria considerar como tolerável crendice popular. Decerto à mistura com alguma ironia. Ironia e condescendência podem ir de par. A ironia é sinal de inteligência, e a inteligência, quando é fanática, a si mesma se nega. Coisas em que os “fundamentalistas” teriam a aprender com alguns “fascistas” – sejamos justos. Mas isto não se diz num conto de Verão. Não leiam, por favor.

Pois lá estava a bruxa. Era uma barraca que sobressaía de entre todas, não só porque no exterior pretendia denotar esoterismo pela aparência – esse esoterismo barato que se contenta com luas, sóis e estrelas certamente pintadas sobre um fundo azul-escuro –, como ainda pela sua localização: em local penumbroso pela maior profusão de árvores meio desalinhadas, bem ao fundo da Avenida das Tílias.

Foi uma experiência brevíssima, mas decisiva. Eu era pequeno, lembro-me. Pequeno, curioso, irrequieto, como convém que seja o futuro investigador… Entrei, resoluto e intrigado, que é mistura de atitude hoje pouco em voga, porque ora quase só se intriga o tíbio e se resolve o bruto. Naquela altura, e sendo criança, poderia experimentar as duas coisas a um tempo.
Privilégios de infâncias. Logo me foi dado ver, pelo velado de uma cortina translúcida, um vulto de mulher sem idade, creio que com um turbante ou um lenço. E não cheguei a aproximar-me do santo dos santos. Logo um portentoso vozeirão rouco grunhiu um repelão que me fez retirar, às arrecuas, correndo. Nunca mais entrei em barraquinha de bruxa. Pergunto-me ainda hoje a razão de aquela mulher solitária, sem clientes, ter repelido assim um miudinho (admitamos, ao menos ficcionalmente, que simpático), o qual lhe iria fazer perguntas naturalmente ingénuas. Seria hábito? Muitas crianças se atreveriam por aqueles ignotos domínios? Aquele uivo, certamente relatado depois aos mais velhos, pelo pânico dos intrusos, dar-lhe-ia mais fama e mais freguesia? Ou estaria apenas enfadada e teria querido divertir-se pregando um susto? Era a sua fama que estava em causa? Uma bruxa que se preze deve proceder assim? Haveria na época já venerável Ordem das Bruxas, ou respectivo Sindicato com norma deontológica imperativa impondo aquele tratamento, quiçá até violador dos direitos das crianças? Ou, pelo contrário, não terão as crianças consuetudinário direito a bruxas más, que as assustem como deve ser? Não sei, realmente não sei. Desde Jean Bodin que os juristas não estudam a sério o problema…Mas foi uma bela de uma experiência, até para mim, que sou mais adepto da simulação virtual ou do modelo lógico que da experimentação no terreno (é que esta, no limite, pode ser fatal).…que las hay!

Aquela bruxa sem graça e sem grande história seria afinal decisiva porque, no fundo, passado o impacto, acabou por me não assustar com o seu berro. Deixou-me, isso sim, mais perplexo. Quiçá se tivesse conversado comigo, ela teria quebrado o sortilégio. Por ela, certamente, continuou a minha sedução pelo mistério… e pelas bruxas de verdade. Porque que las hay, hay… Só mais tarde me daria conta de seus veros prodígios.