Saturday, August 26, 2006
O retorno do herói
André Veríssimo
Confrontar as múltiplas linhas com a exegese estilística, filosófica e estética e perfeitamente despojada de todo o academismo. O que se revela como subtil ou emergente em alguns dos traços criadores como o dos contos de fadas é a intensidade libidinal, a máscara, o colocar em questão todo o humanismo, a crucifixão de Diónisos, o êxtase impossível num mundo transfigurado. O que está aqui posto em causa? O humanismo primordial. Sem moralismos que a arte não prevê ou antecipa, existem ali e além uns traços de implicações sociais no crescimento do mundo, na solidão humana, na ponte que se traça sobre um universo vazio em que o humano está sem intérpretes. Ocorre-nos, vagamente, o assombro de uma obra como a de Antiedipo de Deleuze e Guattari que pode configurar a alma de uma artista. Com a escrita de traços que vincam uma mediata aplicação política.
O que acontece hoje (na etnologia e na política de géneros ) é o que decorre do contexto e do ambiente da libertação; emerge das componentes sexistas enquanto cúmulo androgínico: e aí está o volume de impressões que colhemos neste veículo intersticial de cromatismos: um retorno eterno do si como componente viva duma sexualidade não dividida. Antes do anelo primordial. Um complot paradoxal destrutivo e tendente a subverter os fundamentos mesmos da ordem social sem pospor-se instaurar uma nova ordem cósmica, daí o seu carácter psicogónico.
Os mitos, bem como os contos de fadas, atingem uma forma definitiva apenas quando estão redigidos e não mais sujeitos a mudança contínua. Antes de serem redigidas, as histórias eram condensadas ou amplamente elaboradas na transmissão através dos séculos. Todas foram modificadas pelo que o contador pensava ser de maior interesse para os ouvintes, pelo que eram as suas preocupações de momento ou os problemas especiais da época.
Os mitos e histórias de fadas têm muito em comum. Mas nos mitos o herói da cultura apresenta-se ao ouvinte como uma figura com a qual se deve rivalizar na sua própria vida, tanto quanto possível – o caso de Ulisses, o caso de Antígona, etc. Um mito pode expressar um conflito interno de forma simbólica e sugerir como pode ser resolvido - mas esta não é necessariamente a preocupação central do mito. O mito apresenta o tema de forma majestosa, transmite uma força espiritual como na Odisseia de Homero (onde as cenas iniciais se passam em Ítaca, no palácio de Ulisses, que se encontra fora. Penélope, a sua esposa, é assediada por inúmeros pretendentes, que lhe fazem a corte na suposição de que Ulisses tenha desaparecido. A deusa Atena, disfarçada num estrangeiro, exorta Telémaco, filho de Ulisses, para sair em busca do pai. O jovem reúne o povo e solicita-lhe um barco. O povo vacila, deixando-se levar pela pressão dos candidatos à mão de Penélope. Atena surge novamente, agora na forma de Mentor, amigo de Ulisses, equipa um barco e parte com Telémaco. Chegam a Pilos, à casa de Menelau. Nenhum deles, porém lhes dá informações sobre o paradeiro de Ulisses...) ou em Sófocles em que o “divino” está presente na forma de heróis sub-humanos. Por mais que nós, mortais, possamos empenhar-nos em ser como estes heróis, permaneceremos sempre inferiores ou diferentes deles.
As figuras e situações dos contos de fadas também personificam conflitos internos, mas sugerem sempre como estes conflitos podem ser solucionados e quais os próximos passos a serem dados na direcção duma humanidade mais elevada. O conto de fadas é apresentado de modo simples, não se fazem solicitações ao leitor. Isto evita que até a menor das crianças se sinta compelida a actuar de um modo específico e nunca a leva a sentir-se inferior ou inibida de imaginar algo de comum vivido. Longe de fazer solicitações, o conto de fadas reassegura, dá esperança para o futuro e oferece a promessa de um final feliz como bem explica a Psicanálise dos Contos de Fadas de Bruno Bettelheim. Para decidir se uma história é um conto de fadas ou algo inteiramente diferente, perguntamo-nos se poderia ser correctamente chamada de “presente de amor” para uma criança. Os conflitos internos profundos originados nos nossos impulsos primais e emoções violentas, são todos negados em grande parte da literatura infantil moderna e assim a criança não está familiarizada a lidar com eles. Mas a criança está sujeita a sentimentos de solidão e isolamento, com frequência experimenta intensa ansiedade. Na maior das vezes ela é incapaz de expressar esses sentimentos em palavras ou só o faz indirectamente: medo do escuro, de algum animal ou pessoa, ansiedade acerca de seu corpo.
O conto de fadas é orientado para o futuro - só partindo para o mundo é que o herói pode encontrar-se e também encontrar o outro com quem será capaz de viver feliz. Isto guia a criança, em termos que ela pode entender inconscientemente quanto conscientemente, e abandonar os seus desejos de dependência infantil e conseguir uma existência satisfatoriamente independente. Hoje as crianças não crescem geralmente dentro da estabilidade de uma família numerosa ou de uma comunidade como na época em que os contos de fadas foram inventados, e é importante prover a criança moderna com imagens de heróis que partiram para o mundo sozinhos e que, apesar de inicialmente ignorarem as coisas últimas, encontram lugares seguros no mundo.
O herói do conto de fadas mantém-se por algum tempo em isolamento, tal como ocorre com a criança moderna, que mais do que antigamente necessita do conforto oferecido pelo homem isolado, do herói, que, contudo, é capaz de conseguir relações significativas e compensadoras com o mundo ambiente.
Cada conto de fadas é um espelho mágico que reflecte alguns aspectos do nosso mundo interior e dos passos necessários para evoluirmos da imaturidade para a maturidade; contém sob a superfície os torvelinhos da nossa alma, do psiquismo, e o meio de obtermos paz dentro de nós mesmos e em relação ao mundo.