Friday, August 25, 2006

Conto de Verão



Conto avesso


André Verissimo

Pressinto, creio que pressentimos todos, neste início de século, de milénio e de ano, mudanças profundas que, apesar de uma longa incubação, surgem hoje de repente à luz do dia com o descaramento dos factos consumados. Mas a história não conhece irreversíveis. Nada é definitivo, nem nada é erradicável uma vez por todas no ser humano.

Esther Mucznik

A chegada dele à sua mesma humanidade impõe-lhe o exílio e de todos os conceitos que vão conexos a esse sintoma, quase diria, a essa gramatologia. Perguntarmo-nos sobre a realidade, é perguntar pelo “que é” como na República se considera haver Formas de toda a pluralidade e que para tal detêm um único nome, o meu é Isaac...
Essa obsessão de si como passividade não deixa tempo para o cuidar-se, podendo manifestar a busca dum secreto do sujeito numa identidade suposta, como o seu ser mesmo, mas numa virtualidade de recorrência infinita.
A obrigação a sair de si, que o arranca a partir da emergência da significação, que emana do rosto.
A aproximação do Eu ao Infinito é medida generosa de aproximação ao Teu rosto.
A fundação da superioridade vem da entrada do terceiro, do outro homem, da outra mulher, no rosto, pelo qual o sentido da humanidade me habita.
O sujeito humano passa a ser habitado nos seus âmbitos mais íntimos pelo desejo do outro, nem procurando uma angra de si, que seja si mesmo.
As excepções: o sexo. O corpo e a saliva. O ardor e a espuma dos dias findos....

As emissoras precisam estar atentas, as ficções, como sereias electrónicas, dominam a programação. A Gal-Galaz, trabalha e assim a KolHalev, a Lelo-Hafsaka, a Reshet Bet, etc...
O Professor Marcelo Sousa, debita noutra onda ainda com forte propulsão, a substância viva da cultura que encontra na energia do Portugal pequeno para redinamizar a ficção do tempo político.
O grotesco da Paula Rego presente hoje na minha imaginação e o sublime da vida vivida por aí nesse mundo negro e sombrio das máquinas de atrelar consciências: a televisão. As telenovelas não poderão fugir do estilo de tribalismo neogrotesco que infesta a ecologia dos media.

Contudo, entre uma e outra signagem da violência na TV, as imagens dionisíacas farão a sua curta aparição no vídeo. Para o melhor e para o pior, a parte orgânica, vitalista, caótica e vigorosa, fluida e vínica invade o meu odor de ervas e flores murchas, madeira e sabor ocre e levemente frutado. A natureza humana é um ingrediente básico na construção do diário de biodegenerescência. Tudo óbvio.
Apesar da banalização da violência, sensacionalismo e escatologia estética, as “identidades colectivas” irrompem e falam. Como pode falar o colectivo?

Falam sempre no intervalo. Tudo o que é grave acontece no intervalo, na fenda, na ausência, na fissurra, no reparo, na ruptura, na obliteração....A fala do medo dos que não têm uma consciência. Uma consciência. Podem os homens, Lola, ter múltiplas consciências...mas como acordam sobre a imperfeição do Uno?

À tona de mim a “Minhota” e o meu lambarisco de whisky Sbell enceto novos procedimentos ético-estéticos, numa épica pessoal, em transformação.

Lembro-me de mim no deserto entre pedras do mar, calhaus rolados, e a Welwitchia Mirabilis com um cantil de leite e café a tiracolo, sem perturbação das mordidas dos lacraus e indo ao ponto em que me perco no fim da memória como também da primeira polução nocturna. Uma parcela inegável de prazer e ausência... do espaço, da cor do rio seco e do revoluto mar salgado e quente qual líquido do ventre de mulher... e ainda assim, dos dias azuis, como os olhos cerúleos da Lola. Penso em Velimir Khlebnikov

Neste dia de ursos cerúleos
a correr sobre cílios tranqüilos
transvejo para além da água azul
o acordar na taça das pupilas./ Na colher de prata de olhos latos
vejo a procelária em mar sonoro
e ao largo vai a Rússia dos pássaros
transvoando entrecílios ignotos. /Marventoso em celamor soçobra
a vela de alguém na azul esfera,
e eis que o desespero tudo engolfa
trovão e porvir de primavera.
(1918) - (Tradução: Haroldo de Campos e Boris Schnaiderman)


Escrevo, em Porto Alexandre em 1972: como gosto incontextuadamente da cultura extasiada belo brilho efémero dos “olimpianos” pós-modernos, duma partilha das experiências fundamentais do riso, da catarse e da poética pela sociedade de massas, como sugere o teórico da recepção, H.R. Jauss. Parece que nasci adulto, a pensar. Minto a mim mesmo não tinha idade para escrever isto... e para o pensar?

Somente te digo, Lola que não te esqueci desde que me mordeste...para me consolar. Guardo esta escariação da infância. E a queda brutal da janela do primeiro andar na Escola Primária 56. Durante 3 horas não assumi o fôlego da fala. Não da da fala poética torguiana. Nem sabia onde morava o Otorrinolaringologista da minha terra. Creio que foi o melhor Nobel que não tivemos e o que tivemos foi um frio estaliniano que me fez percorrer de horror a coluna vertebral....Rachmaninov, Schumann, Beethoven.... Nada não tugia nem mugia. Uma beleza ímpar dos rios de areia e uma consolação tépida do útero da terra. Bernardino Freire de Andrade, meu irmão pernambucano, contigo re-nasci em 1875 de casaco branco e calças de menininho bom e cara triste,.... Para mim fora o primeiro contacto lancinante com a moda do Western Spaghetti ali a dois passos... no cine-teatro Moçâmedes. Os ódios e as assombrações, todos esses sentimentos da infância que me perseguem, como o vinho avinagrado. Como me marcou a bosta do boi montalegrense, barrosão, ou a errância de Edmond Fleg. A vida é uma espécie de thriller policial. O fio condutor da vida consiste numa série de crimes ajustados à letra cometidos ao longo do conta-quilómetros estragado, ensinou-me o grande mestre Quentin Tarantino... Estes crimes misteriosos, persistirão até o último capítulo, que tu não conheces, porque és um livro, sujo ou indecifrável, dentro de livros. Uma obra aberta, como a de Umberto Eco, esse cow-boy da semiótica, em que nada se conclui, criador duma visão trágica do mundo, marcado pelo eterno retorno, do homem de Pforta, passagem e circularidade, por uma inspiração nietzsheana e cabalística. Bem-haja. Bang-Bang!

Um elemento que eu mal toquei, Lola, é o humor da vida. O diálogo é algo útil, e algum dele ecoa na grande literatura numa forma moderna, profana, como a de Gabriela Llansol ou Stefan Zweig que nos diz em Jeremias que ninguém vela, ninguém a não ser eu - ele (Zedekia). O diálogo é a contra-encosta do vinho! Vinho, acrescenta Zedekia, dá-me vinho! Eu digo o mesmo...
Elimina os ídolos, Lola; os gurus quebram tabus. Os teus seios estiveram permanentemente sob o meu crivo do silêncio e da interdição, até um dia. As nossas cenas cegas concernentes à sensualidade foram sempre dissimuladas, entre o Lápis e a borracha entre a escrita e a borragem, entre o frenesi e o karma penetrante. Entre o teu sorriso vertical abstracto e loucura da normalidade dum futuro que anula o presente. Uma concessão autorizada pelas regras do (neo)liberalismo, do consumo e do hedonismo quotidiano.
A minha escola branca, e da Dilva, de casuarineiros estimulava-me, como sabes... um tipo de resistência contra a intolerância, lugar de convivência simpática entre os indivíduos de etnias diferentes, conforme se projectava na dimensão cultural, realizava-se também, na dimensão do mundo vivido. Este creio, foi o meu primeiro contacto com a fenomenologia de Mérleau-Ponty. A carne como casamento à felicidade futura e meio de consciência, da senciência....Poesia e música excelente, o teu sabor e a percepção do teu peso insustentável na minha memória fálica. Percebi que as emoções, os afectos, o pathos, as formas de atracção ou repulsa cruas representadas na escola e no seu teatro, também nos WC’s, Lola, como as formas primais do amor e do ódio. E tu eras quase nada. O avesso por momentos, antes do fecho deste livro, como a música de Paco Bandeira, de mim, ainda assim. Tens beleza, tens doçura, que mistério tens no olhar ...Mas, há sempre um motivo, que me faz voltar atrás...