Thursday, August 17, 2006
Quem tem medo do papel branco?
Paulo Ferreira da Cunha*
A escrita é uma obsessão: ora positiva, ora negativa. Dos que escrevem, e dos que não ousam fazê-lo. E dos que o fazem, mas parece que vencendo uma resistência tão alta e escarpada como a montanha de Sísifo.
Um anjo inconsútil nos agarra pelas espaldas e empurra para o branco do papel. Ai, anjo de lugares comuns... O papel branco é para uns desafio, e para outros traumatismo.
De vez em quando, assistimos a esse ritual bizarro, pelo menos surpreendente, de supra sumos literários e afins deplorarem o papel branco. O síndroma do papel branco, o trauma do papel branco, a barreira do papel branco, que isto, que aquilo. Ora, ora... Qual é o escritor (e o “trabalhador da cultura” em geral) que tem mesmo medo do papel branco? Digo isto com o mesmo ritmo ou música com que diria: “Quem tem medo do Lobo Mau?”
Mito do papel branco. Isso é que é.
O papel branco, dir-se-ia em saborosa linguagem maoísta (hoje já meio arcaica por aqui), é um tigre de papel... E não podem deixar de me vir à lembrança todos os tigres célebres, de Blake, de Borges, do Calvin e Hobbes, esse que era a razão maior do nosso Agostinho da Silva ler o jornal. Gostava dessas tiras de humor.
E às tiras vejo eu o papel branco: tiras de tigre... de papel.
Deve ser um álibi curioso, esse do bloqueio do papel branco. Desconfio que é um tópico utilizado quando se não tem mais nada que dizer. Permitam-me corrigir: pode até ter-se muito que dizer, mas não ocorrer no momento em que nos perguntam (assim como podem perguntar-nos coisas que não estimulam o que de verdadeiramente importante temos em nós). E aí, aí sim: há uma barreira, um bloqueio. Julgo que é o geral bloqueio da comunicação social. O qual leva qualquer sábio a debitar banalidades.
Ponham um prémio Nobel da Medicina a falar da obra do prémio Nobel da Paz, ou vice-versa e verão o que normalmente dará... Com raras e honrosíssimas excepções, evidentemente... sobretudo de médicos e pacifistas que nunca chegarão a Prémios Nobel (quanto mais não seja por falta de longevidade... como com graça teria comentado Hayek, jurista de formação e Nobel da Economia: que recebeu o prémio apenas em 1974 – ex aequo com Gunnar Myrdal -, apenas dois anos antes do mesmo ser atribuído ao seu “discípulo” Milton Friedman).
Tenho assistido a essa banalização da sabedoria com muitos vultos de relevo. Isto de ser mediático obriga a baixar tanto o nível que já pouco resta. Há excepções, naturalmente. E elas devem decorrer, evidentemente, da arte comunicativa e da exigência do “artista”, mas também de outro factor mais simples e mais democrático: é que, com o tempo, a habituação às câmaras e outros instrumentos, a mensagem deixa de ser tanto o meio, para o meio se submeter a uma mensagem prévia – isto, sobretudo, no plano do pensamento.
Proponho pois que falemos, alternativamente, do bloqueio mediático e do peso do mediaticamente correcto sobre o que pensamos. É preciso coragem e presença para pensar diferentemente de toda a gente quando se é entrevistado para a televisão, até para a rádio...
E acresce o problema do tempo. Limitados a um soundbyte, os entrevistados a custo conseguem expressar um pensamento autónomo. E, quando o esboçam, as frases podem ser truncadas para que digam o que toda a gente diz, ou o para que a personagem em causa desempenhe o papel que lhe distribuíram na farsa ou na tragicomédia. E terá sido por lhes repugnar este constrangimento que, por exemplo, ao que parece, o antigo chanceler alemão Helmut Schmitt entendeu dever retirar-se das lides políticas mais imediatas. É que, ao que consta, não conseguiria exprimir-se devidamente com as limitações que se lhe impunham... ou não se via retratado no que lhe atribuíam.
O papel branco, ao contrário da constrição apertadíssima do tempo de antena nos media mais imediatistas, é uma libertação. No mesmo papel branco pode redigir-se um hai-ku minúsculo ou a obra monumental de Camilo Castelo Branco. Um telegrama ou Guerra e Paz... (para parafrasear um símile de António Alçada Baptista, na sua Peregrinação Interior). O papel tudo comporta, como se dissesse: “espraia-te, se quiseres; sê conciso, se te apraz”. Serão, na escrita, os “génios” literários, filosóficos e das ciências sociais, humanas e normativas (pelo menos), sem obra publicada, ou de um só livro (timeo hominem unius libri), comparáveis ao Pacheco do Eça, na oral?
Aos que têm medo do papel branco proponho que comprem papel de cor. Há no mercado toda uma gama, qual arco-íris.
Professor universitário
(Artigo de O Primeiro de Janeiro)
A escrita é uma obsessão: ora positiva, ora negativa. Dos que escrevem, e dos que não ousam fazê-lo. E dos que o fazem, mas parece que vencendo uma resistência tão alta e escarpada como a montanha de Sísifo.
Um anjo inconsútil nos agarra pelas espaldas e empurra para o branco do papel. Ai, anjo de lugares comuns... O papel branco é para uns desafio, e para outros traumatismo.
De vez em quando, assistimos a esse ritual bizarro, pelo menos surpreendente, de supra sumos literários e afins deplorarem o papel branco. O síndroma do papel branco, o trauma do papel branco, a barreira do papel branco, que isto, que aquilo. Ora, ora... Qual é o escritor (e o “trabalhador da cultura” em geral) que tem mesmo medo do papel branco? Digo isto com o mesmo ritmo ou música com que diria: “Quem tem medo do Lobo Mau?”
Mito do papel branco. Isso é que é.
O papel branco, dir-se-ia em saborosa linguagem maoísta (hoje já meio arcaica por aqui), é um tigre de papel... E não podem deixar de me vir à lembrança todos os tigres célebres, de Blake, de Borges, do Calvin e Hobbes, esse que era a razão maior do nosso Agostinho da Silva ler o jornal. Gostava dessas tiras de humor.
E às tiras vejo eu o papel branco: tiras de tigre... de papel.
Deve ser um álibi curioso, esse do bloqueio do papel branco. Desconfio que é um tópico utilizado quando se não tem mais nada que dizer. Permitam-me corrigir: pode até ter-se muito que dizer, mas não ocorrer no momento em que nos perguntam (assim como podem perguntar-nos coisas que não estimulam o que de verdadeiramente importante temos em nós). E aí, aí sim: há uma barreira, um bloqueio. Julgo que é o geral bloqueio da comunicação social. O qual leva qualquer sábio a debitar banalidades.
Ponham um prémio Nobel da Medicina a falar da obra do prémio Nobel da Paz, ou vice-versa e verão o que normalmente dará... Com raras e honrosíssimas excepções, evidentemente... sobretudo de médicos e pacifistas que nunca chegarão a Prémios Nobel (quanto mais não seja por falta de longevidade... como com graça teria comentado Hayek, jurista de formação e Nobel da Economia: que recebeu o prémio apenas em 1974 – ex aequo com Gunnar Myrdal -, apenas dois anos antes do mesmo ser atribuído ao seu “discípulo” Milton Friedman).
Tenho assistido a essa banalização da sabedoria com muitos vultos de relevo. Isto de ser mediático obriga a baixar tanto o nível que já pouco resta. Há excepções, naturalmente. E elas devem decorrer, evidentemente, da arte comunicativa e da exigência do “artista”, mas também de outro factor mais simples e mais democrático: é que, com o tempo, a habituação às câmaras e outros instrumentos, a mensagem deixa de ser tanto o meio, para o meio se submeter a uma mensagem prévia – isto, sobretudo, no plano do pensamento.
Proponho pois que falemos, alternativamente, do bloqueio mediático e do peso do mediaticamente correcto sobre o que pensamos. É preciso coragem e presença para pensar diferentemente de toda a gente quando se é entrevistado para a televisão, até para a rádio...
E acresce o problema do tempo. Limitados a um soundbyte, os entrevistados a custo conseguem expressar um pensamento autónomo. E, quando o esboçam, as frases podem ser truncadas para que digam o que toda a gente diz, ou o para que a personagem em causa desempenhe o papel que lhe distribuíram na farsa ou na tragicomédia. E terá sido por lhes repugnar este constrangimento que, por exemplo, ao que parece, o antigo chanceler alemão Helmut Schmitt entendeu dever retirar-se das lides políticas mais imediatas. É que, ao que consta, não conseguiria exprimir-se devidamente com as limitações que se lhe impunham... ou não se via retratado no que lhe atribuíam.
O papel branco, ao contrário da constrição apertadíssima do tempo de antena nos media mais imediatistas, é uma libertação. No mesmo papel branco pode redigir-se um hai-ku minúsculo ou a obra monumental de Camilo Castelo Branco. Um telegrama ou Guerra e Paz... (para parafrasear um símile de António Alçada Baptista, na sua Peregrinação Interior). O papel tudo comporta, como se dissesse: “espraia-te, se quiseres; sê conciso, se te apraz”. Serão, na escrita, os “génios” literários, filosóficos e das ciências sociais, humanas e normativas (pelo menos), sem obra publicada, ou de um só livro (timeo hominem unius libri), comparáveis ao Pacheco do Eça, na oral?
Aos que têm medo do papel branco proponho que comprem papel de cor. Há no mercado toda uma gama, qual arco-íris.
Professor universitário
(Artigo de O Primeiro de Janeiro)