Thursday, July 13, 2006

ENTRE OS "JUDEUS PERDIDOS" DE MALLORCA

Michael Freund
Correio Shavei Israel

Séculos após a Inquisição, os Chuetas, descendentes de judeus forçados a se converter ao Cristianismo na ilha de Mallorca, no Mediterrâneo, lutam por resolver questões relativas à sua ascendência e identidade judaica.

Erguendo-se bem acima da cidade, sobre uma pequena colina que domina a baía, a Catedral "La Seu" de Palma de Mallorca é uma majestosa lembrança do passado legendário da Espanha. Com mais de cinqüenta metros de altura, a estrutura gótica está construída principalmente com arenito dourado, e seus compactos e elevados contra-fortes dominam o horizonte da capital de Mallorca.

Para todos efeitos, a estrutura é uma edificação cristã, usado como um lugar de culto. Mas aparentemente, numa absurda volta do destino, a catedral, assim como a própria Mallorca, tem um "ângulo judeu" oculto, que é tanto oculto a olho-nu como notoriamente visível desde que saibamos para onde olhar.

Na verdade, uma das suas mais proeminentes características é uma enorme rosa numa janela, que se estende por mais de doze metros e contém mil duzentas e trinta e seis peças individuais de vidro colorido. Esta janela, curiosamente, parece ter a forma de uma grande Estrela de David. Se é uma ilusão ótica, ou um furtivo ato de desafio arquitetônico judaico, ninguém pode determinar com completa certeza. Mas, isto deixa no espectador, o mistério sobre a verdadeira natureza da sua identidade. É católico, ou judeu, ou possivelmente está em algum ponto intermediário?

Para Miquel Segura, um destacado colunista e comentarista político num jornal de Mallorca, questões de identidade semelhantes, estão no âmago da sua própria existência.

Segura é um "Chueta", nome com o qual são conhecidos os descendentes de judeus de Mallorca convertidos à força ao Cristianismo há mais de cinco séculos atrás. Embora o termo seja pejorativo e insultante, com alguns historiadores sugerindo que o termo provém da palavra usada em catalão para "porco", Segura ainda assim o usa com orgulho evidente.

"Eu fui despertado para a minha identidade Chueta na escola", diz, "onde as crianças usavam o termo como insulto.... eu era freqüentemente objeto de gracejo para meus amigos". Quando Segura, que foi criado como católico, perguntou a seu pai sobre a sua identidade Chueta, "ele me respondeu com argumentos elaborados", que despertaram a curiosidade do jovem sobre o seu passado e seus ancestrais.

À medida que Segura começou a investigar o seu passado, isto trouxe a ele uma mistura de emoções com as quais até hoje ele se debate. "Senti um enorme orgulho, mas também uma espécie de vazio no meu interior. Senti que meu destino seria não pertencer a ninguém, ser considerado um estrangeiro ou um renegado por ambos lados", diz, se referindo a católicos e judeus.

Apesar dos ancestrais de Segura praticarem o Catolicismo por séculos, ele encontrou discriminação nos cristãos de Mallorca, que continuam vendo os Chuetas da ilha com desdém e desprezo.

"Quando comecei sair com a mulher que é atualmente a minha esposa", relata Segura, "parte da sua família se opôs, dizendo-lhe que seus filhos nunca seriam iguais aos demais, que teriam ´sangue sujo´, e inclusive que nós, os Chuetas, cheiramos mal". Em 1994, Segura publicou um livro em catalão intitulado "Memória Xueta", no qual declarou abertamente a sua identidade Chueta. O livro causou sensação em Mallorca, onde o tema tem sido por muito tempo considerado um tabu.

Ainda reconhecendo que "a discriminação contra os Chuetas diminuiu em Mallorca", Segura insiste que ela permanece viva e é um fenômeno vigente. Quando ele escreve com simpatia a Israel -"a terra de meus ancestrais"- nas suas colunas, as pessoas freqüentemente atribuem sua posição política ao fato de ele ser Chueta.

Ao longo dos séculos, os Chuetas de Mallorca foram obrigados a resistir terríveis perseguições e intolerância nas mãos da Igreja e da Inquisição. Por séculos, o povo do lugar continuou se referindo a eles como "Cristãos Novos", recusando o intercâmbio através de matrimônio com eles, e impedindo-os de possuir qualquer posição proeminente, fosse na própria Igreja ou na comunidade.

Ironicamente, foi esta mesma exclusão sofrida pelos "Cristãos Velhos" de Mallorca, o que permitiu aos Chuetas preservar sua identidade até chegar ao século XX.

De acordo com Gloria Mound, diretora do Instituto de Estudos sobre Marrano - Anussim sediado em Gan Yavne / Israel, "Mallorca tem o recorde de manter o sentimento anti-judaico. Apenas nos últimos trinta anos é que foi aceito socialmente o matrimônio entre Chuetas e não Chuetas, e ainda assim, com grande hesitação". E esta hesitação permanece, segundo explica Mound, mesmo em casos nos quais o membro Chueta do matrimônio é um católico devoto que freqüenta a igreja.

O rabino Eliahu Birnbaum, ex-Rabino Chefe do Uruguai residente atualmente em Efrat / Israel, tem estudado na Espanha sobre o fenômeno dos Marranos e Chuetas; e sugere que a sua história e experiência únicas podem significar que muitos deles possam ainda ser considerados judeus de acordo com a Halachá. "Mais que em qualquer outro lugar na Espanha, é possível identificar famílias em Mallorca que são judias de acordo com a Halachá", diz, e acrescenta: “O fato de que os cristãos de lá não permitirem que se casem com membros das famílias locais, e insistirem a vê-los como “diferentes”, forçou a que os Chuetas de Mallorca continuassem casando-se entre si, preservando assim uma estrutura judaica, independente do fato de isto ser ou não sua intenção”.

Desta maneira, diz o rabino Birnbaum, "se tomássemos a decisão de realizar um estudo cuidadoso, acredito que poderíamos encontrar pessoas que não só sentem com força a sua identidade judaica, mas que inclusive são judeus de acordo com a Halachá".

As estimativas sobre o número de Chuetas que vivem atualmente em Mallorca variam, com alguns especialistas sugerindo que poderiam ser entre quinze e vinte mil, embora não todos estejam necessariamente conscientes ou em sintonia com a sua origem judaica. Para aqueles que sim, contudo, resta ainda um difícil obstáculo para vencer antes de chegar a uma relação harmônica com a sua identidade: o medo. A um visitante pode parecer estranho e até inconcebível, que no século XXI, no coração da moderna Europa, ainda existam pessoas com medo de "sair do armário" e revelar a sua origem judaica.

Mas a existência deste temor entre os Chuetas de Mallorca é inequívoca. David, um jovem Chueta nascido em Mallorca que passou por uma conversão formal ao Judaísmo na França e vive agora na Espanha continental, diz que esse medo deve ser visto no contexto histórico apropriado.

"Temos atrás de nós uma difícil história de perseguição e estigmas", diz ele. "Os Chuetas carregam demasiados séculos de exclusão sobre as costas. A estória pessoal e familiar pesa muito sobre eles, e muitos Chuetas pensam que retornar ao povo judeu significa voltar a ser perseguidos". Mesmo agora, após ter passado pela sua própria conversão, David nos pede para não utilizarmos o seu verdadeiro nome nem a sua fotografia, citando o que ele se refere como "razões óbvias".

Miquel Segura, o colunista de Mallorca, concorda, dizendo que "o medo antigo que sentem os Chuetas de Mallorca está plenamente justificado. Muitos não estão plenamente conscientes dele, mas continuam carregando uma memória distante de humilhação e desprezo. Eles sabem que seu avô não pode ser nomeado prefeito da cidade, por exemplo, por causa da sua identidade Chueta, e a eles foi imputado um terrível complexo de culpa ao longo das gerações".

Apesar desta barreira psicológica, numerosos Chuetas ainda assim, tem buscado atravessar um processo formal de retorno ao povo judeu, seja mudando-se para a Espanha continental e unindo-se com as comunidades judaicas, ou viajando a Israel para realizar estudos de conversão.
Uma destas pessoas é o rabino Nissan Ben-Avraham, quem reside atualmente em Israel, na comunidade de Shiló na Samária, onde estuda e ensina Torá todos os dias.

Nascido em Mallorca em 1957, o rabino Ben-Avraham era conhecido então como Nico Aguilar. Sendo criança, conta, descobriu inicialmente a sua identidade, um dia, quando viajava de carro com a sua mãe. Percorriam a rua Crescas, chamada assim em nome de um famoso cartógrafo local, quando o pequeno Nico apontou para a placa da rua e rindo, disse para sua mãe: "Ele foi um Chueta". Sua mãe encarou-o e então lhe disse: "Por que tu estás rindo? Tu também és um Chueta".

A revelação deixou Aguilar em estado de choque: "Estava aturdido. Lembro claramente que por várias semanas, a única coisa em que podia pensar era: 'Eu? Eu sou um Chueta?'. Tu deves entender que essa palavra era terrível, era considerada um insulto".

Com o transcorrer de alguns anos, já mais velho, Aguilar começou ler livros sobre Judaísmo, e visitou a pequena sinagoga de Mallorca, que foi fundada por judeus expatriados. Mais tarde, mudou-se para Israel e foi convertido ao Judaísmo pelo Rabinato Chefe na primavera de 1978, adotando o nome de Nissan, mês hebraico no qual teve lugar a sua transformação espiritual.
Mais tarde, seguiu estudos judaicos mais intensos na Yeshivat Mercaz HaRav em Jerusalém, e foi ordenado rabino ortodoxo pelo Rabinato Chefe em 1991.

O rabino Ben-Avraham é autor de dois livros em catalão destinados ao público Chueta. Um deles, intitulado "Els Anussim", examina a atitude da literatura rabínica em relação aos Chuetas ao longo dos séculos; o outro, intitulado "La Por", é uma novela histórica sobre o massacre e conversão forçada dos judeus de Mallorca em 1391.

Perguntado sobre o que o futuro reserva para os Chuetas de Mallorca, o rabino Ben-Avraham declara que deve-se atuar para evitar que se assimilem. "Está claro para mim que o mundo judeu deve ir a seu auxílio", diz, "pois, na minha opinião, eles são judeus de acordo com a Halachá, porque não houve intercâmbio matrimonial com o resto da população até a geração mais recente, e há uma tradição ininterrupta que preserva a sua identidade desde a época das conversões forçadas em 1391 até nossos dias".

A investigadora Gloria Mound concorda com a avaliação do rabino Ben-Avraham, e acrescenta com tom de urgência. "A menos que se faça algo imediatamente, temo que restarão apenas os seus sobrenomes", diz.

E isto, diz o rabino Ben-Avraham, seria uma pena. "Que terrível perda seria do ponto de vista de D-us", diz, "se após seiscentos anos de sofrimento e perseguição, os Chuetas não retornem ao Judaísmo. Ainda que a Bíblia nos diz que os judeus retornarão como 'um de uma cidade e dois de uma família', tenho a esperança de uma interpretação mais ampla deste versículo".

A Perseguição no Passado

A presença judaica em Mallorca pode datar do século V E.C., embora pouco se saiba sobre a história da região anterior a este período. Quando o rei Jaime I da Catalunha capturou Mallorca das mãos dos mouros muçulmanos em 1229, a muitos judeus do seu séqüito foram-lhes asseguradas propriedades lá. Durante as décadas seguintes, Jaime I garantiu proteção aos judeus e ampliou-lhes direitos.

No início do século XIV, entretanto, a situação dos judeus sofreu uma mudança negativa. Os distúrbios anti-judaicos explodiram em 1305, e a primeira difamação sangrenta ocorreu em 1309, quando vários judeus foram falsamente acusados de ter assassinado um menino cristão. Sob o governo de Sancho I, que assumiu o poder em 1311, a sinagoga de Palma de Mallorca foi confiscada e transformada em igreja, e as propriedades pertencentes a judeus foram igualmente alienadas.

Em 1391, os pogroms anti-judaicos eclodiram em toda a Espanha. No dia 10 de julho daquele ano, os distúrbios se estenderam a Mallorca, onde muitos judeus foram massacrados, e comunidades inteiras aniquiladas. Outros judeus foram forçados a se converter ao Cristianismo, e alguns conseguiram fugir da ilha.

A Inquisição Espanhola foi particularmente ativa em Mallorca, onde já em 1407, um judeu que tinha se convertido ao Catolicismo mas mais tarde retornou ao Judaísmo, foi queimado na fogueira. As cruéis táticas da Igreja fizeram que outros judeus, chegados à ilha após o massacre de 1391, adotassem o Cristianismo à força.

Os judeus convertidos, de qualquer maneira, nunca foram aceitos pelos seus vizinhos cristãos, que sempre os desprezaram e referiram-se a eles como "Chuetas" ou "Cristãos Novos".

A Inquisição continuou operando na área por séculos: em 1675 e 1691, uns trezentos anos depois que seus ancestrais se tornaram cristãos, um grande número de Chuetas foi processado e executado pela Inquisição por "reincidir" no Judaísmo.

Um incidente infame ocorreu em 1667, quando um barco cheio de judeus que navegava para Leghorn ancorou em Mallorca para repor provisões. As autoridades da Inquisição seqüestraram um menino de dezesseis anos do navio, chamado Jacobo López, depois de ter recebido a informação que seus pais, convertidos ao Cristianismo, tinham permanecido judeus secretamente. Depois de autorizar o resto dos passageiros do barco a zarpar, torturaram López até que confessasse. Mas quando López recusou renegar a sua fé judaica, as autoridades da Igreja o queimaram vivo em janeiro de 1675 em frente a uns trinta mil espectadores.

A Inquisição só foi abolida formalmente na área quando os franceses capturaram Mallorca no início do século XIX, contudo isto não significou o fim da discriminação anti Chueta.

Em 1856, distúrbios explodiram depois que um número de Chuetas tentou se integrar a um clube exclusivo, reacendendo a chama enfurecida da população local.

Escritores como o francês George Sand no século XIX, e o inglês Robert Graves no século XX, escreveram sobre os Chuetas com grande simpatia, lamentando o ódio e os preconceitos a que eles foram submetidos pelos seus compatriotas de Mallorca.

As restrições legais contra os Chuetas terminaram somente em 1931, quando se constituiu a República Espanhola. Em 1942, os alemães Nazistas solicitaram ao arcebispo da ilha uma lista dos Chuetas, como parte da sua campanha de rastrear aqueles que tivessem "sangue judeu". Diz-se que o arcebispo deixou de lado a exigência.

Durante o último século, com a liberação e publicação de vários registros inquisitoriais, muitos habitantes de Mallorca puderam confirmar seu passado e a identidade de seus ancestrais, embora para outros isto significasse a revelação de um segredo que sempre tentaram manter oculto.