Friday, August 10, 2007

Kafka, nós e Saramago

Kafka, nós e Saramago

Andre Moshe Pereira


1. A nossa alegria, a nossa miséria, as contingências da realidade que nos cerca têm uma grande influência no que nós escrevemos.
A escrita é uma vigília do desastre pessoal… as implicações do desastre e do trauma pesam muito sobre nós, como uma sociedade inteira, como um povo inteiro. O mundo está cada vez a ficar mais estreito. Isso é conhecido da famosa fábula de Kafka, Uma Pequena Fábula. Um rato que escapa por pouco a uma armadilha e um gato que impende sobre ele. A quem vive em situações extremas e vive a violenta realidade do conflito político militar e religioso, vê a confinação do seu mundo aumentar a sua diminuta proporção vital, por cada dia que passa. E o crescer deste espaço vazio um pedopsiquiatra, Pedro Strecht acrescenta, em Da vida – “todas as situações de crianças em dificuldades têm um eco nas emoções de quem as conhece e procura ajudar. Abordar o abandono, a perda, a morte, é ir ao encontro de algumas das nossas principais angústias, sendo o abalo particularmente intenso. (…) Apesar disso, a dignidade mantida no seu sofrimento relembra a nossa frágil condição humana e engrandece a ideia de vida. Que um homem tem que viver com um pé na Primavera, dizem”. (Pedro Strecht, Crescer Vazio, Círculo de Leitores, Lisboa, p. 39). Podemos falar acerca do vazio que cresce entre o ser humano e as condições exteriores, as situações caóticas nas quais ele vive. O homem é assim um animal condicionado, (Vítor Frankl tem aliás um excelente ensaio sobre o Homem em condição na perspectiva logoterápica), a natureza da situação dita-lhe a sua vida em todo e em cada aspecto. E esse vazio nunca fica vazio. Rapidamente se enche com a apatia, com o cinismo e mais do que todo o resto, com o desespero. O desespero que alimenta situações distorcidas, permitindo-lhes que persistam mais e mais, em alguns casos por gerações. Desesperar das possibilidades de sempre mudar o prevalecente estado das coisas, e de qualquer ser ser disso redimido. E o desespero, doença mortal, que é ainda mais fundo – desespero daquilo que a situação distorcida expõe, em ultima análise, em todos e cada um de nós. Sentimos o peso agressivo, que o povo de Israel paga pelo permanente estado de Guerra. O encolhimento da área de superfície da alma que fica em contacto com o mundo ameaçador e sangrento lá fora. A limitação da própria capacidade e disposição para se identificar mesmo um pouco que seja a dor dos outros. A suspensão do julgamento de moralidade. O desespero que muitos judeus, experienciamos do possível entendimento sobre os nossos mesmos pensamentos verdadeiros, do estado de coisas, que é tão terrífico e decepcionante e complexo, quer moralmente quer praticamente. Consequentemente vemo-nos convictos de seria melhor não pensar em nada e estabelecemos as normas morais nas mãos de quem sabe e pode “conhecer melhor”.

2. Diz um dos nossos hostis figadais: o pseudo-moralista e mau exegeta Sr. José Saramago. ‘Intoxicados mentalmente pela ideia messiânica de um Grande Israel que realize finalmente os sonhos expansionistas do sionismo mais radical; contaminados pela monstruosa e enraizada "certeza" de que neste catastrófico e absurdo mundo existe um povo eleito por Deus e que, portanto, estão automaticamente justificadas e autorizadas, em nome também dos horrores passados e dos medos de hoje, todas as acções próprias resultantes de um racismo obsessivo, psicológica e patologicamente exclusivista.’ José Saramago, escritor, prémio Nobel de 98, em 'Das pedras de David aos tanques de Golias' (El Pais, Madrid, 21/4/2007). O que ele, Saramago, não sabe, é que os israelitas se preocupam com a justiça, quer com a questão dos direitos humanos, (alguns, mais à esquerda) com o sofrimento do povo palestiniano sem liderança capaz e democrática, quer obviamente com o bombardeamento atroz e dementado das populações civis de Israel pelos Hezbollah e Hamas. Não sabe e provavelmente não tem ciência para denotar a sua mesma leitura inadequada das teses que coloca sobre a cabeça dos palestinianos. Infere sem conhecer. Saramago pode apoiar os direitos dos palestinos e dos espanhóis porque é um «espanhol livre» de Lanzarote. Não vive, como seria mais natural, ainda que depois do falecimento do comunismo, em Kiev, Lviv ou Gdansk ou em Tashkent, em Vilnius, Riga, ou Moscovo ou em Irkutsk, Krasnoyarsk, Novosibirsk, Omsk, Tomsk, etc.. Não (re)conhece a dualidade pragmática não meramente táctica mas mesmo estratégica (esquerda e direita) das políticas israelitas e a sua diferença. Embrulha-se com a questão do “povo eleito”. A concepção de povo eleito tem uma estrutura complexa que não é a «eclesiástica» de Saramago. A eleição corresponde a uma evolução do pensamento religioso de um determinado povo. E tem este povo, conotações profundamente morais e comunitárias mas de obrigação e deveres (Mitzvoth). Como isso é mal interpretado a concepção saramaguiana de eleição como factor genético ou tutorial toma a sagração da raça, conduta agressiva, racismo agressivo, psicológico, patológico e exclusivista. Nada disto é certo. E é mesmo malcriada a sua assertiva pela boca ou pela pena de Saramago.


3. Muito menos é segura a interpretação do livro Devarim por Saramago com respeito à justiça de D’us. No Devarim existe muita humanidade, e profecias por cumprir, o pensamento religioso judeu não é estanque e é múltiplo plural e infinito. Os Chachanim, sábios, fariseus, têm uma visão muito humana dessa passagem que Saramago não quis ou não soube interpretar. Porque a realidade do mundo é mutável e complexa. Baste lembrar milenarmente, um pasuq de Haggadah de Pesah “e cairam sobre nós com coacções duras, como diz o verso: “E servindo-se os egipcianos dos filhos de Israel com dureza”. E exclamamos a Adonay em nossa voz, e ouviu a nossa aflição o nosso lazério, e o nosso aperto”. Or Zaríah, 45. Por outras palavras por causa da perpétua e total e muito real receio de sermos feridos e mortos, de perdas inadmissíveis, ou enfim da “mera” humilhação, todos e cada um de nós, os conflitos de cidadania, dos seus prisioneiros, esmagam a nossa própria vivacidade, o nosso diapasão mental e cognitivo, sempre envolvido em camadas protectoras, que acabarão, D’us não permita, por nos sufocar, na busca incessante da justiça. O rato de Kafka está certo: quando o predador está próximo de ti, o mundo torna-se opressivamente estreito. E também a linguagem que descreve esse fenómeno. A linguagem dos outros, v.g., Saramago, pode não conter mais que do que uma camada bem urdida de clichés e slogans que é bem o caso. Começa por vezes com estes ideólogos (como é o caso do revisionismo filigrânico e judeofobia de Saramago: “educados e treinados na ideia de que quaisquer sofrimentos que tenham infligido, inflijam ou venham a infligir aos outros, e em particular aos palestinos, sempre ficarão abaixo dos que padeceram no Holocausto, os judeus arranham interminavelmente a sua própria ferida para que não deixe de sangrar, para torná-la incurável, e mostram-na ao mundo como se tratasse de uma bandeira”. José Saramago, escritor, prémio Nobel de 98, em 'Das pedras de David aos tanques de Golias' (El Pais, Madrid, 21/4/2007). Sendo Saramago um dos bem tratados pelo pós-capitalismo Ocidental, com a cumplicidade institucional com a filtragem dos mass-media e a sua visão das coisas e germina numa muito bem urdida linguagem que atinge a audiência target com estórias de fácil digestão. E este processo finalmente infecta e infiltra a esfera privada, íntima e conflitual dos cidadãos mesmo que a custo procurem não o admitir. A esta última passagem responde o médico judeu José Itzigsohn em 1 de Agosto de 2007, desde Jerusalém, da seguinte forma: “Saiba Você (Saramago) que isso não nos faz falta porque outros se encarregam permanentemente de fazê-lo: o estalinismo, o neonazismo, a propaganda dalguns países árabes que utilizam os Protocolos dos Sábios de Sião como se fosse uma verdade comprovada e paro de relatar. Noutro momento Você se pergunta se em relação aos judeus, se o sofrer tanto não seria o melhor motivo para não fazer sofrer aos demais. Estranho pensamento este que contudo se transformou num lugar comum, segundo o qual, o sofrimento devesse fazer melhor a um povo. Talvez a alguns indivíduos mas não a um povo no seu conjunto. Pelo contrário, os sofrimentos inauditos, ainda sem chegar ao extremo de Auschwitz, as humilhações reiteradas, tornam um povo mais receoso, mais convencido que não tem nada que aguardar do mundo e que só pode confiar em si mesmo”. Mais do que tudo, estamos melhor se não sentirmos demasiado – ao menos a até que isto possa passar. Mesmo a estupidez de Saramago. A sua atrabílis espanhola e a sua visão mirífica das coisas, que um dia quisera fazer de todos e cada um de nós um espanhol português, como um espanhol catalão ou um espanhol andaluz, etc…com a sua usual falta de sentimento de humanidade, com o máximo de indiferença, uma porção de sublimação erudita, e um pouco de intencional cegueira e largas doses de autoanestesiação.