Wednesday, August 29, 2007
A Cabala Revisitada XV
A decisão e a metáfora
Andre Moshe Pereira
É comum referir a ética a momentos chave da cultura maior dos povos. Eu refiro-a neste texto presente à minha herança, fé e credo hebraicos, e à vivência intelectual e filosófica agora no contributo à semana judaica europeia, no contexto da nossa kehillah or ahayim. A comunidade judaica luz da vida, no Porto.
D.us faz a promessa: “ E estabelecerei a minha aliança com ele [Isaac], uma aliança eterna, e para sua semente depois dele.” (Bereshit, Génesis 17:19).
Algum tempo depois, D.us ordenou a Abraão “Toma, rogo, teu filho, teu único, a quem amas, a Isaac, e vai-te à terra de Moriá, e oferece-o ali como oferta de elevação, sobre um dos montes que te direi” (22:2).
No momento crítico foi quando Abraão teria que matar Isaac, talvez olhando-o nos olhos, como considerar estas aparentes e inconsistentes mensagens?
Abraão conhecia que D.us lhe tinha prometido a ele, que Isaac entraria na sua bênção e pacto. Ele estaria também consciente da contradição entre a promessa da vida eterna através dos seus descendentes e da sentença de morte que aniquilaria o futuro de Abraão. Parecer-lhe-ia que estaria em face dum teste de ter que escolher dentre os dois imperativos? Poderia ele olhar para a face sem defesa de Isaac, colocar a lâmina sobre o seu pescoço, cortar o seu pescoço e ver o sangue do seu filho derramar-se sobre o altar?
Perguntar-se-ia sobre se teria tido uma compreensão correcta do mandamento?
Perguntou-se Abraão: «Meu D.us é um D.us de misericórdia e justiça, por isso pode ter acontecido que Satã tenha falado comigo?» Ou: “ No passado D.us disse-me que escutasse a voz de Sara. Devo eu consultá-la este respeito?” Ou “ Deverei esperar novas instruções?” Ou desde que D.us me prometeu que terei descendentes através de Isaac, devo eu acreditar que D.us certamente ressuscitará Isaac depois de o ter sacrificado?”.
Rashi indica em lituras de MR e Levinas (esp. em Emmanuel Levinas, Totality and Infinity, trans. A. Lingis (Pittsburgh: Duquesne University Press, 1969) p. 199 e em James Mensch, "Abraham and Isaac: A Question of Theodicy," in T. Wright, P. Hughes & A. Ainsley, trans. A. Benjamin and T. Wright "The Paradox of Morality: An Interview with Emmanuel Levinas," in The Provocation of Levinas: Rethinking the Other, ed. R. Bemasconi and D. Wood (London, Routledge, 1988) p. 11) e esclarece a ambiguidade oi ha’alehu I’olah [resgatá-lo com sacrifício] apontado a Abraão como uma intimação subtil da verdadeira intenção de Hashem. “ D.us não disse a Abraão shahtehu para o matar (a Isaac), mas somente para o conduzir ao cimo da montanha em ordem a preparar uma oferta ardente” (Vd. acima 22:2).
Nenhumas palavras são citadas entre Abraão e Isaac durante três dias no caminho para o cimo do Monte Moriá. Ao terceiro dia, Isaac enche-se de coragem para perguntar ao seu pai: “….onde está o cordeiro para a oferta de elevação? E disse Abraão: D.us proverá para si o cordeiro para a oferta de elevação, meu filho” (22:7-8). Abraão poderia ter construído a sua resposta desta forma: “Meu filho, D.us verá o cordeiro para a imolação”. Quando ele coloca as palavras, “meu filho”, no fim, depois da menção do cordeiro, quisera ele implicar que Isaac poderia ser o cordeiro? Se sim, Isaac entenderia isto? “E chegaram ao lugar que lhe havia dito D.us, e edificou ali Abraão o altar e pôs a lenha em ordem, e amarrou a Isaac seu filho, e o colocou no altar, sobre a lenha” (22:9).
O filósofo judeu francês Emmanuel Levinas escreveu de que Abraão fitou o seu filho na face sobre o altar e ele viu a D.us. Pelo intermédio dos olhos de Isaac D.us proclamou “tu não o matarás!”. Então, em vez de isso ser uma suspensão da ética, torna-se o começo da ética. Para Levinas e ele mesmo ensina: “ A epifania do rosto é ética”. A face de Isaac pode sobrepujar a voz d D.us. Abraão encontrou D.us na face de Isaac, a segunda voz (a voz do anjo) sobrepujou a primeira (a de D.us) e avocou Abraão de volta para a ética. Como poderia Abraão ter escolhido entre o comando da voz de D.us no sacrifício de Isaac, e a do anjo um mero mensageiro de D.us, contrariando o comando directo de D.us? A atenção de Abraão à voz de Deus é que o conduziu de volta à ordenação ética, proibindo-o de consumar um sacrifício humano, e este é o mais elevado ponto do drama, o seu acmê. Que Abraão tenha obedecido à primeira voz é admirável: que ele tenha tido o distanciamento suficiente com respeito à obediência para escutar a segunda voz – isso é essencial.
Ora o que significa numa forma telegráfica, a ética na sua formulação contemporânea?
Significa mais do que nunca a nudez do outro, e nudez do rosto tem pelo menos dois significados em Levinas. A nudez do outro é uma metáfora não somente para a vulnerabilidade mas para a diferença que Levinas vê entre as meras coisas, que nós conhecermos nos temas mais diversos, nos rostos das pessoas, que expressam o seu ser para além de toda a tematização.
A face, o rosto é a nua da tematização: a face do outro fala-me antes de eu poder aplicar a tematização, as estruturas de representação com que conheço o outro. Nisto, o rosto, a face, do outro transcende a minha ideia disso, e é assim uma expressão do infinito. Todavia, todas as outras entidades excedem as nossas ideias acerca delas. Não é possível exaurir os detalhes da realidade e na descrição das coisas. Posso na verdade dar conta de uma árvore como de um salgueiro de catorze metros de altura, com a ideação da sua coloração no Outono, o seu contraste irradiante com tudo o que a cerca, os pinheiros verdes. Mas como é bom de ver estes detalhes não esgotam a descrição de tudo o que uma árvore é. Uma árvore pode ser tematizada, mas como Martin Buber explica, nós podemos também entrar em relação com isso, tal que isso confronta a minha corporeidade e não tem o mesmo valor e acordo como eu lido com isso – é somente diferente… O que eu encontro não é nem a alma da árvore nem dum gnomo, mas a árvore em si mesma” (Buber, Martin. 1970. I and Thou. Trans. Walter Kaufmann. New York: Charles Scribner’s Sons).
O mesmo Martin Buber que refere Blaise Pascal e nas linhas indecifráveis – que afectam os nossos gemidos na nossa alma mesma escrevera após duas horas de êxtase, – e que o carregaram na dúvida até à sua morte numa nota enroscada no bolso do seu colete, e que achamos sobre o título Fogo a nota “D.us de Abraão, D.us de Isaac, D.us de Jacob – não o dos filósofos e escolásticos.” (Buber, M., Eclipse of God, Humanities Press Internacional, Inc. & Harper Row, 1988:49).
Andre Moshe Pereira
É comum referir a ética a momentos chave da cultura maior dos povos. Eu refiro-a neste texto presente à minha herança, fé e credo hebraicos, e à vivência intelectual e filosófica agora no contributo à semana judaica europeia, no contexto da nossa kehillah or ahayim. A comunidade judaica luz da vida, no Porto.
D.us faz a promessa: “ E estabelecerei a minha aliança com ele [Isaac], uma aliança eterna, e para sua semente depois dele.” (Bereshit, Génesis 17:19).
Algum tempo depois, D.us ordenou a Abraão “Toma, rogo, teu filho, teu único, a quem amas, a Isaac, e vai-te à terra de Moriá, e oferece-o ali como oferta de elevação, sobre um dos montes que te direi” (22:2).
No momento crítico foi quando Abraão teria que matar Isaac, talvez olhando-o nos olhos, como considerar estas aparentes e inconsistentes mensagens?
Abraão conhecia que D.us lhe tinha prometido a ele, que Isaac entraria na sua bênção e pacto. Ele estaria também consciente da contradição entre a promessa da vida eterna através dos seus descendentes e da sentença de morte que aniquilaria o futuro de Abraão. Parecer-lhe-ia que estaria em face dum teste de ter que escolher dentre os dois imperativos? Poderia ele olhar para a face sem defesa de Isaac, colocar a lâmina sobre o seu pescoço, cortar o seu pescoço e ver o sangue do seu filho derramar-se sobre o altar?
Perguntar-se-ia sobre se teria tido uma compreensão correcta do mandamento?
Perguntou-se Abraão: «Meu D.us é um D.us de misericórdia e justiça, por isso pode ter acontecido que Satã tenha falado comigo?» Ou: “ No passado D.us disse-me que escutasse a voz de Sara. Devo eu consultá-la este respeito?” Ou “ Deverei esperar novas instruções?” Ou desde que D.us me prometeu que terei descendentes através de Isaac, devo eu acreditar que D.us certamente ressuscitará Isaac depois de o ter sacrificado?”.
Rashi indica em lituras de MR e Levinas (esp. em Emmanuel Levinas, Totality and Infinity, trans. A. Lingis (Pittsburgh: Duquesne University Press, 1969) p. 199 e em James Mensch, "Abraham and Isaac: A Question of Theodicy," in T. Wright, P. Hughes & A. Ainsley, trans. A. Benjamin and T. Wright "The Paradox of Morality: An Interview with Emmanuel Levinas," in The Provocation of Levinas: Rethinking the Other, ed. R. Bemasconi and D. Wood (London, Routledge, 1988) p. 11) e esclarece a ambiguidade oi ha’alehu I’olah [resgatá-lo com sacrifício] apontado a Abraão como uma intimação subtil da verdadeira intenção de Hashem. “ D.us não disse a Abraão shahtehu para o matar (a Isaac), mas somente para o conduzir ao cimo da montanha em ordem a preparar uma oferta ardente” (Vd. acima 22:2).
Nenhumas palavras são citadas entre Abraão e Isaac durante três dias no caminho para o cimo do Monte Moriá. Ao terceiro dia, Isaac enche-se de coragem para perguntar ao seu pai: “….onde está o cordeiro para a oferta de elevação? E disse Abraão: D.us proverá para si o cordeiro para a oferta de elevação, meu filho” (22:7-8). Abraão poderia ter construído a sua resposta desta forma: “Meu filho, D.us verá o cordeiro para a imolação”. Quando ele coloca as palavras, “meu filho”, no fim, depois da menção do cordeiro, quisera ele implicar que Isaac poderia ser o cordeiro? Se sim, Isaac entenderia isto? “E chegaram ao lugar que lhe havia dito D.us, e edificou ali Abraão o altar e pôs a lenha em ordem, e amarrou a Isaac seu filho, e o colocou no altar, sobre a lenha” (22:9).
O filósofo judeu francês Emmanuel Levinas escreveu de que Abraão fitou o seu filho na face sobre o altar e ele viu a D.us. Pelo intermédio dos olhos de Isaac D.us proclamou “tu não o matarás!”. Então, em vez de isso ser uma suspensão da ética, torna-se o começo da ética. Para Levinas e ele mesmo ensina: “ A epifania do rosto é ética”. A face de Isaac pode sobrepujar a voz d D.us. Abraão encontrou D.us na face de Isaac, a segunda voz (a voz do anjo) sobrepujou a primeira (a de D.us) e avocou Abraão de volta para a ética. Como poderia Abraão ter escolhido entre o comando da voz de D.us no sacrifício de Isaac, e a do anjo um mero mensageiro de D.us, contrariando o comando directo de D.us? A atenção de Abraão à voz de Deus é que o conduziu de volta à ordenação ética, proibindo-o de consumar um sacrifício humano, e este é o mais elevado ponto do drama, o seu acmê. Que Abraão tenha obedecido à primeira voz é admirável: que ele tenha tido o distanciamento suficiente com respeito à obediência para escutar a segunda voz – isso é essencial.
Ora o que significa numa forma telegráfica, a ética na sua formulação contemporânea?
Significa mais do que nunca a nudez do outro, e nudez do rosto tem pelo menos dois significados em Levinas. A nudez do outro é uma metáfora não somente para a vulnerabilidade mas para a diferença que Levinas vê entre as meras coisas, que nós conhecermos nos temas mais diversos, nos rostos das pessoas, que expressam o seu ser para além de toda a tematização.
A face, o rosto é a nua da tematização: a face do outro fala-me antes de eu poder aplicar a tematização, as estruturas de representação com que conheço o outro. Nisto, o rosto, a face, do outro transcende a minha ideia disso, e é assim uma expressão do infinito. Todavia, todas as outras entidades excedem as nossas ideias acerca delas. Não é possível exaurir os detalhes da realidade e na descrição das coisas. Posso na verdade dar conta de uma árvore como de um salgueiro de catorze metros de altura, com a ideação da sua coloração no Outono, o seu contraste irradiante com tudo o que a cerca, os pinheiros verdes. Mas como é bom de ver estes detalhes não esgotam a descrição de tudo o que uma árvore é. Uma árvore pode ser tematizada, mas como Martin Buber explica, nós podemos também entrar em relação com isso, tal que isso confronta a minha corporeidade e não tem o mesmo valor e acordo como eu lido com isso – é somente diferente… O que eu encontro não é nem a alma da árvore nem dum gnomo, mas a árvore em si mesma” (Buber, Martin. 1970. I and Thou. Trans. Walter Kaufmann. New York: Charles Scribner’s Sons).
O mesmo Martin Buber que refere Blaise Pascal e nas linhas indecifráveis – que afectam os nossos gemidos na nossa alma mesma escrevera após duas horas de êxtase, – e que o carregaram na dúvida até à sua morte numa nota enroscada no bolso do seu colete, e que achamos sobre o título Fogo a nota “D.us de Abraão, D.us de Isaac, D.us de Jacob – não o dos filósofos e escolásticos.” (Buber, M., Eclipse of God, Humanities Press Internacional, Inc. & Harper Row, 1988:49).
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