Thursday, July 19, 2007
"O meu partido é Lisboa"?
Esther Mucznik
A votação relativamente expressiva nos "independentes" exprime a vontade de castigar os partidos
Face aos resultados das eleições intercalares em Lisboa, temos duas opções: ou transformamos Portugal numa província espanhola, como propõe José Saramago - e não teremos mais que nos preocupar, Zapatero velará por nós e por uma Lisboa reduzida a uma pitoresca capital regional; ou nos esforçamos por reflectir e tirar lições dos resultados eleitorais. Como desconfio de que o que move o Nobel é o ressentimento em relação à sua pátria anterior - e a vontade de ser o último a apagar a luz -, prefiro a segunda solução.
Assim, aqui vão alguns pontos que, em minha opinião, decorrem do acto eleitoral em Lisboa:Em primeiro lugar, a dimensão da abstenção. É difícil não ver que ela é o espelho da composição majoritária da população que ainda mora na capital: de um lado, uma população envelhecida, menos predisposta a uma intervenção cívica e com as dificuldades naturais da idade; do outro, uma população pobre, e por vezes marginal, moradora nos bairros populares ou sociais, normalmente descrente, desinteressada, sem cultura de participação. Estes dois tipos de população são os mais permeáveis à abstenção. Normalmente, fala-se dos lisboetas de uma forma abstracta, mas a realidade é bem concreta: falta, em Lisboa, o elemento mais dinâmico, quer do ponto de vista político, quer económico e cultural - a classe média. Assim, a primeira preocupação do executivo camarário deveria ser como incentivar a classe média jovem a habitar em Lisboa, nomeadamente tomando medidas sobre o mercado do arrendamento.
Em segundo lugar, e em conformidade com a generalidade das análises, a votação exprime a descrença nos partidos, cada vez menos representativos das populações e mais permeáveis às pressões dos diversos lobbies e à pequena e grande corrupção que corrói o sistema partidário. No entanto, e se bem que o voto seja o menos exigente dos deveres democráticos, é também um dos elementos básicos da cidadania numa democracia liberal. Seria bom que cada abstencionista, em vez de passar o tempo a lamentar-se e a atirar as culpas todas aos partidos, pensasse que o voto é não só um direito, mas também um dever de todo o cidadão, nem que seja para exprimir a sua rejeição ou protesto através de um voto em branco.
A votação relativamente expressiva nos "independentes" exprime essa vontade de castigar os partidos. Mas é preciso ir mais além: o eng.º Carmona Rodrigues fez uma campanha baseada na vitimização e na irresponsabilidade. Independentemente de todas as razões de queixa que possa ter, para um homem que assumiu um papel decisivo na Câmara Municipal de Lisboa ao longo dos últimos seis anos, primeiro como "vice" de Santana Lopes e desde há dois anos como presidente, essa vitimização seria apenas patética, se não fosse imoral. Mas a verdade é que tal atitude, combinada com uma campanha popularucha e antipartidos - "a minha canção é o fado, o meu partido é Lisboa" -, forneceu a receita do sucesso. Espantoso? Não, apenas mais um sinal de que vivemos um tempo em que as vítimas são os novos heróis. Podem cometer todos os erros, todos os crimes até, mas, se vestirem a pele do cordeiro ameaçado pelo lobo mau, têm o perdão garantido. E o lobo neste caso concreto era Marques Mendes e o PSD. Um PSD que foi castigado, pelo menos parcialmente, por uma atitude de decência em relação a um executivo paralisado por sucessivas demissões e sobre o qual recaíam suspeitas de envolvimento de alguns dos seus membros em actos de corrupção.
É evidente que o PSD não foi penalizado apenas por isso: numa autarquia como Lisboa, ninguém vota abstraindo-se completamente da atitude geral do partido em questão. E a verdade é que, desde a eleição de José Sócrates, o PSD desapareceu: face a um executivo socialista que, ao contrário do PS francês, entendeu a necessidade de pôr em prática reformas normalmente conotadas com a direita, tudo se passa como se os partidos que se reivindicam da direita ou centro-direita ficassem esvaziados de política própria, reduzidos a uma oposição-reacção pontual e feita essencialmente de denúncia, muitas vezes até pela esquerda.
É verdade que as sociedades actuais são extremamente complexas e, provavelmente, as tradicionais divisões esquerda/direita já não constituem referências suficientes para a formulação de políticas adequadas, mas sem uma demarcação política e ideológica clara não há oposição credível. E uma boa oposição é sempre necessária a uma democracia saudável. Assim, mais do que um simples rolar de cabeças - caminho que, ao que tudo indica, já irrompeu pelo menos no PSD - é cada vez mais necessária uma reflexão de fundo sobre o papel dos partidos, o poder e a oposição.
Finalmente, e contrariamente a algumas opiniões, a vitória do PS em Lisboa é uma vitória significativa, pelo menos tão significativa como a derrota do PSD, dada a dispersão dos votos pelos numerosos candidatos, nomeadamente uma candidatura no seu próprio campo, a de Helena Roseta. Para um partido que está no governo e cujo estado de graça já passou há muito, é um bom resultado.
Mas o que é importante é o que fará António Costa da presidência da câmara. Entre todos os candidatos, é, sem dúvida, o mais preparado e com maior solidez política. As suas "dez medidas imediatas" podem ter na opinião pública um efeito estimulante. Mas o que se exige do governo da cidade é um plano integrado a médio e a longo prazo, muito para além dos dois anos que nos separam do fim do mandato. Lisboa não é apenas a soma da cultura, habitação e urbanismo, trânsito, segurança e policiamento. Qualquer plano tem de obedecer a uma visão global do que é uma capital europeia no séc. XXI e partir da análise dos problemas reais de Lisboa, para definir uma política global.
Há dois factores que, em minha opinião, condicionam tudo o resto: o primeiro é a necessidade de destruição do monstro burocrático que hoje é a máquina camarária, obstáculo a qualquer iniciativa cívica e privada e a qualquer alteração de fundo; a segunda é a urgência de repovoar a cidade, nomeadamente através da mudança do mercado de arrendamento, porque sem o elemento humano nenhuma mudança é possível. Nada disto se obtém de um momento para o outro. São ambos objectivos de longo fôlego que exigem um corredor de fundo. Será António Costa o homem?
Investigadora em assuntos judaicos
A votação relativamente expressiva nos "independentes" exprime a vontade de castigar os partidos
Face aos resultados das eleições intercalares em Lisboa, temos duas opções: ou transformamos Portugal numa província espanhola, como propõe José Saramago - e não teremos mais que nos preocupar, Zapatero velará por nós e por uma Lisboa reduzida a uma pitoresca capital regional; ou nos esforçamos por reflectir e tirar lições dos resultados eleitorais. Como desconfio de que o que move o Nobel é o ressentimento em relação à sua pátria anterior - e a vontade de ser o último a apagar a luz -, prefiro a segunda solução.
Assim, aqui vão alguns pontos que, em minha opinião, decorrem do acto eleitoral em Lisboa:Em primeiro lugar, a dimensão da abstenção. É difícil não ver que ela é o espelho da composição majoritária da população que ainda mora na capital: de um lado, uma população envelhecida, menos predisposta a uma intervenção cívica e com as dificuldades naturais da idade; do outro, uma população pobre, e por vezes marginal, moradora nos bairros populares ou sociais, normalmente descrente, desinteressada, sem cultura de participação. Estes dois tipos de população são os mais permeáveis à abstenção. Normalmente, fala-se dos lisboetas de uma forma abstracta, mas a realidade é bem concreta: falta, em Lisboa, o elemento mais dinâmico, quer do ponto de vista político, quer económico e cultural - a classe média. Assim, a primeira preocupação do executivo camarário deveria ser como incentivar a classe média jovem a habitar em Lisboa, nomeadamente tomando medidas sobre o mercado do arrendamento.
Em segundo lugar, e em conformidade com a generalidade das análises, a votação exprime a descrença nos partidos, cada vez menos representativos das populações e mais permeáveis às pressões dos diversos lobbies e à pequena e grande corrupção que corrói o sistema partidário. No entanto, e se bem que o voto seja o menos exigente dos deveres democráticos, é também um dos elementos básicos da cidadania numa democracia liberal. Seria bom que cada abstencionista, em vez de passar o tempo a lamentar-se e a atirar as culpas todas aos partidos, pensasse que o voto é não só um direito, mas também um dever de todo o cidadão, nem que seja para exprimir a sua rejeição ou protesto através de um voto em branco.
A votação relativamente expressiva nos "independentes" exprime essa vontade de castigar os partidos. Mas é preciso ir mais além: o eng.º Carmona Rodrigues fez uma campanha baseada na vitimização e na irresponsabilidade. Independentemente de todas as razões de queixa que possa ter, para um homem que assumiu um papel decisivo na Câmara Municipal de Lisboa ao longo dos últimos seis anos, primeiro como "vice" de Santana Lopes e desde há dois anos como presidente, essa vitimização seria apenas patética, se não fosse imoral. Mas a verdade é que tal atitude, combinada com uma campanha popularucha e antipartidos - "a minha canção é o fado, o meu partido é Lisboa" -, forneceu a receita do sucesso. Espantoso? Não, apenas mais um sinal de que vivemos um tempo em que as vítimas são os novos heróis. Podem cometer todos os erros, todos os crimes até, mas, se vestirem a pele do cordeiro ameaçado pelo lobo mau, têm o perdão garantido. E o lobo neste caso concreto era Marques Mendes e o PSD. Um PSD que foi castigado, pelo menos parcialmente, por uma atitude de decência em relação a um executivo paralisado por sucessivas demissões e sobre o qual recaíam suspeitas de envolvimento de alguns dos seus membros em actos de corrupção.
É evidente que o PSD não foi penalizado apenas por isso: numa autarquia como Lisboa, ninguém vota abstraindo-se completamente da atitude geral do partido em questão. E a verdade é que, desde a eleição de José Sócrates, o PSD desapareceu: face a um executivo socialista que, ao contrário do PS francês, entendeu a necessidade de pôr em prática reformas normalmente conotadas com a direita, tudo se passa como se os partidos que se reivindicam da direita ou centro-direita ficassem esvaziados de política própria, reduzidos a uma oposição-reacção pontual e feita essencialmente de denúncia, muitas vezes até pela esquerda.
É verdade que as sociedades actuais são extremamente complexas e, provavelmente, as tradicionais divisões esquerda/direita já não constituem referências suficientes para a formulação de políticas adequadas, mas sem uma demarcação política e ideológica clara não há oposição credível. E uma boa oposição é sempre necessária a uma democracia saudável. Assim, mais do que um simples rolar de cabeças - caminho que, ao que tudo indica, já irrompeu pelo menos no PSD - é cada vez mais necessária uma reflexão de fundo sobre o papel dos partidos, o poder e a oposição.
Finalmente, e contrariamente a algumas opiniões, a vitória do PS em Lisboa é uma vitória significativa, pelo menos tão significativa como a derrota do PSD, dada a dispersão dos votos pelos numerosos candidatos, nomeadamente uma candidatura no seu próprio campo, a de Helena Roseta. Para um partido que está no governo e cujo estado de graça já passou há muito, é um bom resultado.
Mas o que é importante é o que fará António Costa da presidência da câmara. Entre todos os candidatos, é, sem dúvida, o mais preparado e com maior solidez política. As suas "dez medidas imediatas" podem ter na opinião pública um efeito estimulante. Mas o que se exige do governo da cidade é um plano integrado a médio e a longo prazo, muito para além dos dois anos que nos separam do fim do mandato. Lisboa não é apenas a soma da cultura, habitação e urbanismo, trânsito, segurança e policiamento. Qualquer plano tem de obedecer a uma visão global do que é uma capital europeia no séc. XXI e partir da análise dos problemas reais de Lisboa, para definir uma política global.
Há dois factores que, em minha opinião, condicionam tudo o resto: o primeiro é a necessidade de destruição do monstro burocrático que hoje é a máquina camarária, obstáculo a qualquer iniciativa cívica e privada e a qualquer alteração de fundo; a segunda é a urgência de repovoar a cidade, nomeadamente através da mudança do mercado de arrendamento, porque sem o elemento humano nenhuma mudança é possível. Nada disto se obtém de um momento para o outro. São ambos objectivos de longo fôlego que exigem um corredor de fundo. Será António Costa o homem?
Investigadora em assuntos judaicos