Monday, July 16, 2007

Israel, o oligarca e a ficção

15.07.2007,
Jorge Almeida Fernandes

Publico


Em Israel, o acto mais significativo da celebração do aniversário da Guerra do Líbano foi o lançamento do partido do oligarca israelo-russo Arcadi Gaydamak, Justiça Social. A sua entrada na política é um efeito directo da guerra e nasce do desprestígio da classe dirigente. Será talvez um "fogacho", mas é um revelador do estado do país.
Já houve em Israel toda a espécie de partidos atípicos. Mas nunca houve um populista com o perfil de Gaydamak. É um "ovni". Domina mal o hebraico. Reside em Israel para se furtar a um mandato de captura internacional por tráfico de armas. É investigado pela polícia israelita por "branqueamento" de capitais. Pouco importa. Grande parte da população é pouco sensível ao tema e tem péssima opinião dos políticos.

Quer ser presidente de Jerusalém. Na sessão de lançamento do partido dirigiu-se em especial aos árabes "sem esperança" da Cidade Santa. É popular entre os árabes, os judeus mais pobres e, naturalmente, os "russos". Tornou-se popular com a compra de um clube de futebol. Foi a guerra do Líbano que o transfigurou. Agiu onde o Estado falhou, ao organizar campos de abrigo para os milhares de pessoas fugidas aos rockets do Hezbollah, em 2006. Repetiu a operação esta Primavera em relação aos habitantes de Sderot, bombardeados a partir de Gaza, propondo-se ainda pagar os custos da "fortificação" da cidade. "Tivesse o Governo feito o seu trabalho e Gaydamak não teria conseguido cativar a nação. Quando muito, teria comprado outro clube de futebol", sentenciou no Yediot Ahronot o editorialista Nahum Barnea.
Será um "partido pessoal" em que só o chefe mandará. Ele evita falar da guerra ou da paz. Fala de justiça e igualdade. Resolve o problema propondo Benjamin Netanyahu (cujo eleitorado está a morder) para primeiro-ministro. As sondagens dão-lhe uma cota eleitoral na casa dos 15 por cento e uma elevadíssima popularidade. É o espelho da impotência e do descrédito do Governo.
Se os militares estão hoje a restabelecer a credibilidade perdida na guerra libanesa, o Governo continua a dar uma imagem de fraqueza e balcanização: cada ministro faz a sua política. Incapaz de iniciativa, disfarça uma agenda fictícia - como a política de "fortalecimento dos palestinianos moderados" - com um grande activismo diplomático e verbal. Os israelitas estão hoje confrontados com uma situação política nova e perigosa, que leva alguns analistas a falar em "mudança de paradigma".
Até 2006, Israel tinha dois problemas distintos, que geria separadamente, a questão palestiniana e o dossier nuclear iraniano. Desde os acordos de Oslo de 1993 que estava implícito um modelo de solução, os "dois Estados". Os israelitas dividiam-se entre os partidários do Grande Israel e o campo da paz. O fracasso das negociações de Camp David de 2000 e a segunda Intifada, marcada pelo surto terrorista e pela reocupação militar dos territórios palestinianos, levaram Sharon a formular a doutrina da "separação unilateral". Permitiu-lhe evacuar Gaza sem negociar com os palestinianos. Era uma "estratégia provisória", para ganhar tempo, cujo grande beneficiário foi o Hamas.
A guerra do Líbano começa com a iminência da fusão da ameaça iraniana com a palestiniana. Controlando o Hezbollah, o Irão passava a influenciar o Hamas, pressionando Israel nas fronteiras do Norte e do Sul. Se a decisão da guerra foi em parte marcada por razões de política interna, a "inexperiência" e a vontade de afirmação de Ehud Olmert ou do ministro da Defesa, Amir Peretz, aquela era uma realidade objectiva. Marcou o fim do "unilateralismo". Olmert logo abandonou a promessa de retirada unilateral da Cisjordânia.
A partir daqui, Israel passa a conceber um eixo inimigo que funde as duas ameaças: Irão-Síria-Hezbollah-Hamas. A ele voltaremos.O segundo momento de ruptura é a tomada de Gaza pelo Hamas. Significa o fim ou, no mínimo, um indeterminado adiamento da solução "dois Estados". Agora, mesmo que Olmert queira negociar não tem interlocutor credível. Abbas era credível e podia ser fortalecido em 2005, não em 2007.
Para responder ao problema e manter a ficção de um processo em marcha, israelitas e americanos adoptaram a política de "fortalecer os palestinianos moderados" e "isolar os extremistas". Em termos retóricos, anotou o diário Ha"aretz, os herdeiros de Arafat foram promovidos a "filhos da luz" e os fundamentalistas do Hamas a "filhos das trevas".
A necessidade da ficção é simples: para evitar o contágio da questão palestiniana pelo Irão, Israel precisa de negociar um Estado palestiniano. Mas, na prática, chegou-se a uma situação perversa. Ambas as partes são demasiado "fracas" para assumir iniciativas e fazer concessões. Em segundo lugar, Israel sabe que, por razões de segurança, terá de incluir o Hamas na sua equação. Mas, ao contrário da Fatah, o Hamas não pretende resolver o conflito, quer apenas geri-lo (Matti Steinberg). Segunda consequência de 2006 é "reordenamento das prioridades estratégicas" de Israel (Ze"ev Schiff, Foreign Affairs, Novembro/Dezembro 2006). Israel quase conseguiu controlar a ameaça dos atentados suicidas palestinianos. Agora, "dado o muito maior perigo existencial que o Irão representa, Israel deverá fazer do Irão a sua mais alta prioridade". É este debate que leva ao tema que hoje domina Israel: a Síria. Negociar com Assad tem uma lógica: romper o eixo Teerão-Damasco e neutralizar o Hezbollah. Israel devolveria os Montes Golã.
Numa entrevista à televisão árabe Al Arabiya, Olmert convidou Assad a negociar. A sua MNE, Tzipi Livni, disse o contrário logo a seguir. Olmert voltou à carga na quinta-feira afirmando que a Síria não quer guerra. Mas isso não significa imediata disponibilidade para negociar: Damasco quer que Washington participe na negociação, ou seja, deseja que o seu estatuto político seja reconhecido pelos EUA, o que a Administração Bush recusa. Os militares incitam a explorar a pista síria. O enviado da ONU à região declarou que Damasco lhe deu a entender que estaria disposta a romper a aliança com Teerão e a deixar cair o Hezbollah.
Em Israel, a guerra do Líbano trouxe uma imensa mudança, que explica a vontade de devolver os Golã: os "muros" não param os rockets e ainda menos os mísseis. Os israelitas perceberam que uma próxima guerra não se travará apenas fora das suas fronteiras, mas também no seu território.
Nos últimos meses, muito se falou da eventualidade de guerra. Num dos últimos artigos antes da sua morte, o analista Ze"ev Schiff explicou que seria irracional para todos os actores, Israel, Síria ou Irão. "Mas pode eclodir por um erro."
Um excitante quadro a que só falta uma peça: governo e liderança. Deste ponto de vista, o caso Gaydamak é um mau sinal.