Monday, July 02, 2007

ESPECIAL Israel

ALI KAMEL

Prometo que esta não será uma espécie de redação, como aquelas que fazíamos na escola sobre "nossas férias". Mas acho que esta última viagem tem algo a dizer sobre o mundo em que vivemos. Estive em Israel, país realmente maravilhoso, um tesouro arqueológico, que deveria ser destino de todos aqueles interessados em conhecer de perto o lugar de onde viemos.

Ok, não sou um estúpido e conheço bem o caldeirão de conflitos que aquela parte do mundo representa, o sofrimento do povo palestino, oprimido, agora lutando entre si e se dividindo em dois quinhões fratricidas. Mas vou passar ao largo disso, porque não estive na Cisjordânia ou em Gaza, onde não há segurança para ninguém. Em Israel, o que vi foi um país orgulhoso de si, em eterna construção, com um povo nas ruas verdadeiramente desejando a paz. VI arte, cultura, diversão e segurança. Israel é mais seguro e tranqüilo do que muitas de nossas cidades. Recomendo.

Mas este artigo não é um guia turístico. Quero dar o testemunho de como alguns muçulmanos se tomam perigosamente veículos do vírus da Intolerância. Impressionou-me o fato de que no chamado Muro Ocidental - as ruínas do que sobrou do II Templo - o acesso seja livre a quem ali queira estar. Ninguém pergunta se você é ateu, espírita, muçulmano, cristão ou seja lá o quê. Entre os judeus, há a crença de que o templo, tendo sido um dia a morada de Deus, nunca deixará de ser: se ainda ­ restam algumas pedras, ali Ele estará. Um único pedido é feito aos visitantes: que a cabeça dos homens seja coberta em sinal de respeito. Pode ser por um quipá (o solidéu que os judeus usam e que ali estão disponíveis para os desavisados) ou um chapéu ou mesmo um simples boné, não importa. É a única exigência: o que você fará ali é problema seu. E, para os crentes, de Deus também. Uma coisa é certa: o lugar, ao qual só se chega depois que atravessamos ruelas que remontam a milhares de anos, tem uma grande força mística.O mesmo se pode dizer dos lugares santos para cristãos. A liberdade é total em Nazaré, onde está a Igreja da Anunciação, com a gruta em que o anjo Gabriel disse à Maria que ela daria à luz Jesus, filho de Deus, ou em Jerusalém, onde estão Getsêmani, a gruta no Monte das Oliveiras em que Jesus foi capturado pelos romanos, ou o Santo Sepulcro, onde estão, lado a lado, o local da crucificação de Cristo, a pedra onde o seu corpo foi lavado e purificado e a tumba onde foi sepultado até a ressurreição. Ali, entram o fiel em sua peregrinação mais sagrada e o turista disposto a ver com os próprios olhos um lugar de importância incomensurável para o mundo ocidental. Nenhuma pergunta é feita. É verdade que, para entrar na tumba de Jesus, o padre ortodoxo que organiza a fila pede, às vezes de maneira pouco cortês, que as mulheres com camisetas sem mangas cubram os ombros. Mas é só.O choque se deu quando decidi visitar Al-Aqsa, a terceira mesquita mais sagrada para os muçulmanos e, em frente a ela, o Domo da Rocha, aquela cúpula dourada que faz de Jerusalém uma cidade ainda mais linda e que guarda a pedra de onde Maomé, na companhia do anjo Gabriel, partiu para conhecer o Paraíso. Minha mulher e Rubens, nosso guia, puderam entrar na Esplanada das Mesquitas, mas, desde o início, sabíamos que ambos não teriam acesso ao interior dos templos, desde 2000 vedados a não-muçulmanos. Em Al-Aqsa, os problemas já se fizeram sentir. O guarda palestino - sim, os lugares santos muçulmanos são controlados por eles -, ao ver o meu nome no passaporte e saber que eu não falo árabe, ficou contrariado, fez muitas perguntas, mas acabou me deixando entrar.

No Domo da Rocha, tudo foi mais violento. Ao ver meu passaporte, e o meu nome islâmico que me franqueava a entrada, o guarda quis saber se eu era capaz de ler o Alcorão em árabe. Eu não menti, mas acrescentei que o conhecia muito bem em muitas traduções. Ele se irritou. Ao meu lado, estava o guia (notoriamente judeu, dado o credenciamento). Em hebraico, o policial exigiu que eu recitasse em árabe a Shahadah, o testemunho de fé muçulmano: "Não há outro deus senão Deus, e Maomé é o seu mensageiro". Eu me recusei. Depois, o policial exigiu que eu recitasse as primeiras palavras do Alcorão: "Em nome de Deus, o Clemente, o Misericordioso, louvado seja Deus, Senhor do Universo, o Cle­mente, o Misericordioso, Soberano do Dia do Juizo, servimos-te e invocamos-te em nosso auxílio, guia-nos pelo caminho direito, pelo caminho dos que auxiliaste, não pelo caminho dos que incorreram na tua cólera, nem pelo dos que se perderam". Eu me recusei. Então, novamente o policial me encarou e exigiu saber se eu, lá dentro, rezaria.

Minha perplexidade chegou ao ápice. Por que eu haveria de revelar coisas tão íntimas a um policial fardado ? Diante de meu nome, do meu olhar, de minha fala em inglês e de minhas companhias judaicas, ele decretou: "Sorry, you will not go inside" (perdão, você não vai entrar). Quando um homem feito de carne e osso como todos nós decide que é o porteiro de Deus, as coisas vão mal, muito mal. No mundo islâmico, apenas Meca e Medina são vedadas a não-muçulmanos. Todas as mesquitas são abertas a quem queira visitá-las (eu e minha mulher já visitamos muitas, em muitos países árabes, sem problema algum). Até a segunda Intifada em 2000, também era assim em Al-­Aqsae no Domo da Rocha. Torço para que aquele guarda seja uma exceção no mundo muçulmano. Mas que ele ouse agir assim, e daquela maneira, é um sinal dos tempos que eu espero seja superado. Aquele guarda e os que pensam como ele necessitam saber que Deus não precisa de protetores. Nós, sim.

Ali Kamel - diretor de Jornalismo da TV GloboFonte: Jornal O Globo, dia 26.6.07