Tuesday, November 07, 2006

Vasco Graça-Moura


Vasco Graça Moura


Move-se com o mesmo à vontade nos terrenos da política e da escrita. Acaba de publicar um novo romance. Vasco Graça Moura, poeta e deputado europeu, é o convidado de Carlos Vaz Marques, esta segunda-feira, depois das sete da tarde.
( 19:05 09 de Setembro 03 )
Carlos Vaz Marques
REGISTO AUDIO
1ª Parte2.Parte3-Parte


fanny
fanny, a grande
amiga de minha mãe,
ossuda, esgalgada,
de cabelo escuro e curto,
e filha de uma inglesa,

tinha um sentido prático
extraordinário e era
muito emancipada, para
os costumes da foz
daquele tempo.

uma vez, estando
sozinha no cinema, sentiu
a mão do homem a
seu lado deslizar-lhe
pela coxa. prestou-se a isso e

deixou-a estar assim,
com toda a placidez. mas abriu
discretamente a carteira de pelica,
tirou a tesourinha das unhas
e quando a mão no escuro

se imobilizou mais tépida,
apunhalou-a num gesto
seco, enérgico, cirúrgico.
o homem deu um salto
por sobre os assentos e

fugiu num súbito
relincho da
mão furada.
fanny foi sempre
de um grande despacho,

na sua solidão muito
ocupada num escritório. um dia
atirou-se da janela
do quinto andar
e pronto.


Vasco Graça Moura,
Poemas com Pessoas (1997) in Poesia 1997/2000, Lisboa, Quetzal, 2000.

VASCO GRAÇA MOURA
Nasceu em 1942, na Foz do Douro, no Porto. Formado em Direito na Universidade de Lisboa, exerceu vários cargos públicos: foi Secretário de Estado de dois Governos Provisórios (1975) e desempenhou funções directivas na RTP (1978), na Imprensa Nacional - Casa da Moeda (1979-89) e na Comissão para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses (1989-95). A partir de 1996, dirigiu o Serviço de Bibliotecas e Apoio à Leitura da Fundação Calouste Gulbenkian. Em 1999, foi eleito deputado ao Parlamento Europeu.

A literatura, a investigação e a política são áreas privilegiadas da sua actividade.

Publicou o seu primeiro livro em 1963. É autor de uma vasta obra, com mais de sessenta títulos publicados nos domínios da poesia, do ensaio, do romance e do teatro. Dedica-se também à tradução (Dante, Shakespeare e Rilke, entre outros autores) e é autor de duas peças de teatro. Foi distinguido com vários prémios, entre os quais o Prémio Pessoa (1995), o Prémio de Poesia do PEN Clube (1997) e o Grande Prémio de Poesia da Associação Portuguesa de Escritores. Em 1997 foi-lhe atribuída a medalha de ouro de Florença pelas suas traduções de Dante.Alguns destaques na obra de Vasco Graça Moura:

Poesia:
Modo Mudando (1963)
O Mês de Dezembro e Outros Poemas (1976)
A Sombra das Figuras (1985)
Sonetos Familiares (1994)
Uma Carta no Inverno (1997)
Testamento de VGM (2001)
Antologia dos Sessenta Anos (2002)

Ensaio:
Luís de Camões: Alguns Desafios (1980)
Camões e a Divina Proporção (1985)
Sobre Camões, Gândavo e Outras Personagens (2000)

Romance:
Quatro Últimas Canções (1987)
A Morte de Ninguém (1998)
Meu Amor, Era de Noite (2001)
Diário e Crónica:
Circunstâncias Vividas (1995)
Contra Bernardo Soares e Outras Observações (1999)
Para saber mais sobre Vasco Graça Moura


Durante a última semana, Poesia & Lda tem mantido uma interessante conversa com Vasco Graça Moura (Porto, 1942) que vale a pena partilhar. Uma conversa a pretexto de nada. Uma vez mais, um pretexto apenas para falar de poesia.
João Luís Barreto Guimarães – O real tem constituído, ao longo dos tempos, uma (pre)ocupação permanente dos poetas. Regressa-se agora a um real de onde, eventualmente, nunca se partiu por completo. Que apelo é esse que a realidade exerce sobre o escritor que o leva a escrever? Que vício é esse que leva o poeta a ousar apreendê-lo, por palavras?
Vasco Graça Moura – As palavras estão presas ao real. Não há praticamente nenhuma poesia, nenhuma literatura, que sobreviva se não houver uma especial coerência entre elas e a realidade. Talvez o mesmo se possa dizer em relação a todas as outras artes, sendo certo que, na música, estas coisas se põem em termos qualitativamente diferentes (provavelmente na música, e no Ocidente, o sistema tonal tende a exercer a mesma força de atracção que o real). Estas coisas para mim põem-se em termos de uma extrema simplicidade, sem altos voos filosóficos, num plano prático e corrente dos significados. É claro que a espessura do real é múltipla: tanto inclui o onírico como o pensamento abstracto. Eppure... é sempre o real.
Hoje, assim como nas artes o fim do século XX parece ter ficado assinalado por um "neo-figurativismo" (outra vez o real...), também na poesia se regressa ao real (subjectivo e objectivo) em muitas modalidades. O escritor é um ser humano que utiliza as palavras com um certo nível de exigência qualitativa. Capturar o real, mesmo que seja para fazê-lo "inflectir", é um dos seus objectivos. É provável que o cinema e a fotografia tenham contribuído para acentuar essa necessidade. Não penso que se trate de um vício, mas de uma condição inelutável. A literatura é uma forma de criação artística pela palavra, mesmo quando tenta convocar outras áreas (veja-se, por exemplo, a ekphrasis). A sua relação com o real decorre naturalmente desta condição verbal.
JLBG – Agrada-me pensar a poesia contemporânea à imagem de um funil onde de um lado se caldeassem cinema e fotografia, como referiu, mas também pintura, escultura, música, filosofia, sociologia, e do outro se desse a beber uma bebida plural. Não lhe vou perguntar, naturalmente, se o rótulo dessa garrafa traz escrito “Pós-modernidade”, antes o seguinte: Agora que as diversas disciplinas da arte experimentaram o verdadeiro sabor da interdisciplinaridade, alguma vez voltará, em sua opinião, essa noção de arte pura e impoluta, no sentido clássico do termo?
VGM – Penso que não. De resto, talvez uma arte pura de "contaminações" nunca tenha existido, a não ser para algumas teorias do segundo quartel do século XX. As artes tiveram sempre pontes entre si. Na literatura, isto vem desde Homero e o escudo de Aquiles no canto XVIII da Ilíada. Passa por Dante e pela presença das artes na Divina Comédia, sobretudo no Purgatório. E estou a pensar em Ficino, que forneceu ao Boticcelli programas iconológicos inteiros (como a obra de Dante lhos forneceu), ou em Camões, que tem incursões "plásticas" perfeitamente do seu tempo: o retrato de Tritão, nos Lusíadas, é feito à maneira de Arcimboldo. As ninfas da Ilha dos Amores antecipam algumas formas de Rubens, assim como as flores e frutos ali descritos lembram a natureza morta holandesa e flamenga de finais do séc. XVI, princípios do séc. XVII.
E o que faz o Cesário com o piquenique de burguesas? A pós-modernidade não será o regresso, mais em bruto, da citação e da colagem, de modo a "refigurar" um real que correntes anteriores do séc. XX tinham simulado esquecer ou feito por esquecer? O que há é maneiras diferentes de procurar essas correspondências, seja recorrendo à metáfora, seja à descrição, seja ainda a imitações ou simulações de processos estruturais. Por exemplo, o Eugénio de Andrade recorre predominantemente às metáforas para encontrar equivalências, enquanto o Sena da Arte da Música é mais descritivo. Não lhe parece?
JLBG – De facto, quando relembro a rapariga de Cesário, em “Num Bairro Moderno”, por exemplo, com o seu cabaz de frutos, legumes e hortaliças, ocorre-me sempre a imagem de certas figuras de Arcimboldo. O que me leva a colocar-lhe a questão da poesia enquanto jogo, lúdico e virtuoso, oficinal e formalista: O lado mais lúdico da poesia será incompatível com a sua espessura reflexiva? Existirá mesmo uma poesia séria, dos grandes temas como a fugacidade do tempo e a inevitabilidade da morte, por oposição a uma poesia menor, das pequenas coisas quotidianas? Mais ainda: Essa eventual mudança de paradigma reflectirá contemporaneamente a perda de referentes, de valores, do divino?VGM – Lúdico, aqui, não coincide necessariamente com situações bem-humoradas. Um dos poemas mais lúdicos da nossa literatura é o labirinto de Camões "Corre sem vela e sem leme / a nau que se vai perder", primeiro (creio eu) grande exercício combinatório das nossas letras e que tem mais a ver com o trágico do que com outras categorias. O mesmo se diga dos "violons longs" do Verlaine ou das "arcadas / do violoncelo do Camilo Pessanha", em que o patético resulta de um jogo musical de sonoridades. Há, decerto, grandes temas que podem contrapor-se a uma poesia do quotidiano mais imediato e corriqueiro. Assim como há poesia de grandes voos filosóficos e poesia de grandes mergulhos eróticos (e nesta contraposição até o adjectivo "grandes" tem implicações diferentes).
Mas um minúsculo poema pode conter (e contar) muita coisa. E a categoria de poesia menor é muito discutível. O Eugénio dizia, com muita injustiça, do Pedro Homem de Mello que este era "um grande poeta menor"... Olhe o Carlos Queirós: "Português e vivo / é diminutivo. / Só fazemos bem / Torres de Belém". Ou o José Fernandes Fafe: "Compreende-se tudo / de repente: / São oito séculos a ver o sol morrer / afogado no mar / diariamente" (cito de memória e não garanto a pontuação...).
Também não penso que a mudança de paradigma reflicta a perda de valores. A perda de valores, a angústia perante ela e o sentimento de uma irrecuperabilidade deles, também tem sido uma constante em certos lamentos poéticos desde há muitos séculos. A mudança de paradigma está talvez em que, hoje, se vê o "poético" em realidades ou situações a que antes não se atribuía essa qualidade, o que também acontece na cultura em geral.JLBG – Estou correcto se inferir que, na sua opinião, tudo ou quase tudo pode ser matéria de um poema? Ou, existirá um limite formal, de linguagem, a partir do qual já não se pode chamar à “coisa”, poesia? E ainda isto: Na sua actividade como escritor – perante a matéria-prima em estado bruto, tem desde logo a clara noção se o instante lhe vai exigir um poema, uma crónica ou um texto em prosa? Por outras palavras: é a matéria-prima que determina o género literário ou o virtuosismo do escritor que o impõe?VGM – O ideal seria que o poeta tivesse uma tal oficina que pudesse escrever um poema sobre o que quer que lhe apetecesse. Na prática, est modus in rebus… Na minha actividade, é frequente achar que uma ideia pode converter-se em poema, ensaio, ficção ou crónica. Aí, entra em funcionamento uma espécie de “sentido estratégico” relativamente ao texto: O que é que eu quero dizer? Como é que posso dizê-lo melhor ou mais eficazmente?
Mas também acontece que certas virtualidades só surjam in actu, no próprio momento da escrita, e aí podem obrigar a uma inflexão de um género para o outro. De qualquer maneira, eu não me programo para escrever isto ou aquilo. Funciono mais ao sabor do que me apetece fazer e o texto que resulta é um desenvolvimento desse apetite… Se, a partir de dois ou três decassílabos, pode acontecer que não se saiba ainda se aquilo vai dar um soneto ou não, a verdade é que o virtuosismo pode suscitar uma opção específica: Por exemplo, se eu resolver escrever uma sextina, ou um labirinto à boa maneira maneirista, ou um soneto em espelho, que possa ser lido indiferentemente do princípio para o fim ou do fim para o princípio, ou umas “voltas a mote”, ou uma canção de estrutura canónica, normalmente tenho de começar pela escolha da forma e ir acertando o tratamento da matéria com as exigências do espartilho escolhido. Mas enfim, em nada disto há regras absolutas.
JLBG – Será isso que explica que certos poemas em verso branco, em forma livre, nos pareçam por vezes mais perfeitos do que, por exemplo, alguns sonetos ou sextinas? A sua noção de poema compreende o conceito oficinal de "poema perfeito"? O que poderá ser isso de “poema perfeito”?
VGM – A questão, com toda a franqueza, não me parece muito bem colocada. O sentido da perfeição sobrepõe-se a quaisquer conceitos oficinais. Por exemplo, é discutível que as redondilhas "Sobre os rios que vão", de Camões, sejam oficinalmente perfeitas. Há quem tenha feito a análise de toda uma série de características do poema (repetições, hipérbatos, anacolutos, cacófatos, etc.) para considerá-los "tiques de velhice". A este respeito, já uma vez citei o Adorno, quando ele diz, a propósito do estilo de maturidade em Beethoven, que nos grandes artistas as obras de maturidade representam as catástrofes. Ele refere-se também às regras de "escola" que são transgredidas pelo artista face à pressão daquilo que precisa de exprimir ante o pressentimento de uma aproximação da morte. Ou seja, no plano oficinal, o poema de Camões está longe de ser perfeito.
E todavia o poema parece-me "perfeito" no plano de que estamos a falar. É mesmo, para mim, o maior poema lírico da literatura ocidental... Por outro lado, todos conhecemos poemas oficinalmente perfeitos que valem muito pouco. A questão coloca-nos perante o mistério da arte, aquilo que escapa a toda a dissecação, que tem a ver com um certo sentido de inefabilidade e com uma fenomenologia da fruição estética. Para mim, a oficina, a técnica, o que se lhe quiser chamar são meras condições, é certo que condições sine quibus non, mas, para além delas, tem de haver mais alguma coisa no resultado. A perfeição pode ser atingida pela transgressão das regras. Sentimos que um poema é "perfeito" quando da sua leitura nos resulta uma plenitude que não alcançaríamos de outro modo. Mas isto também é uma perífrase que não resolve nada...
JLBG – Era esse sentido de "perfeição", pela transgressão das regras, a que me referia: Um "poema perfeito" pode bem ser essa rosa que se ergue pelo caule, em toda a sua harmonia, mas que devolvida à jarra nos deixa os dedos a sangrar. Um "poema perfeito" terá que ter arestas, independentemente do seu tema, a questão estará, parece-me, em não as limar em demasia, antes torcer a palavra até ao osso. O que me sugere esta derradeira pergunta: Que papel antevê para a poesia nos dias de hoje? A mesma secreta arte de alguns, para alguns? O regresso do poeta às preocupações sociais? Mais ainda: O poeta, os escritores em geral, terá o direito – é uma pergunta provocadora, bem sei – de se manter autista perante os sinais que a sociedade envia diariamente?
VGM - Não antevejo para a poesia um papel muito diferente daquele que pode caber às outras formas de expressão literária ou artística. O que se espera de um escritor é que faça literatura. O criador está colocado perante a necessidade de se exprimir, na sua singularidade humana e num domínio que não é propriamente utilitário (a não ser nas indústrias do best-seller...), utilizando determinados recursos que a sua capacidade e a sua orientação lhe proporcionam. A mesma singularidade humana que o faz ser criador determinará as modulações específicas da sua produção: intimismo, poesia "pura", intervenção social, reflexão filosofante, aproximação de outras áreas da criação, poesia do quotidiano, poesia concreta, etc., etc., mesmo, se disso carecer, um certo "autismo" alheado de tudo o mais - tudo isso é um problema que só diz respeito a ele e à sua liberdade e ele tem o direito inalienável de resolvê-lo como muito bem entender. As sociedades e o tempo encarregar-se-ão de validá-lo ou não. O criador propõe-se e expõe-se. Mas impõe-se? A resposta não é ele quem pode dá-la...