Wednesday, November 22, 2006

Um desafio à extinção

Tereza Poole

Durante o jantar, na antiga Kaifeng, no centro da China, Zhao Xiangru, 68, repousa seus pauzinhos sobre a mesa. "Nasci em Kaifeng, em 1930", diz ele. "Meus antepassados eram judeus, eu tenho sangue judeu. Tudo isso me foi dado por D-us.
Isso não foi uma escolha pessoal". Apesar de estarmos na China, na mesa de Zhao não havia carne de porco.A existência de um grupo de chineses que reivindicam ser descendentes de judeus é um dos mais curiosos legados da história chinesa.
Em algum momento da dinastia Song (690/1126 e.C;), cerca de 500 comerciantes judeus que viajavam pela Rota da Seda decidiram se estabelecer em Kaifeng, a esplêndida capital imperial com uma crescente população de 1 milhão de habitantes. Os judeus eram provavelmente da Pérsia, mas os estudiosos não têm certeza de sua origem.
Eles foram bem recebidos pelo imperador e construíram a primeira sinagoga de Kaifeng, em 1163. Durante séculos mantiveram as tradições judaicas e os rituais religiosos, incluindo a circuncisão dos meninos e a proibição de comer carne suína.
No início da dinastia Ming (1368/1644), o imperador estabeleceu sete sobrenomes para os judeus de Kaifeng: Ai, Lao, Zhao, Zhang, Shi, Jin e Li. Mas a assimilação à comunidade chinesa e os casamentos inter-étnicos deixaram sua marca na identidade judaica. O último rabino da comunidade morreu por volta de 1800. Perto de 1860, a sinagoga já estava em mau estado e não era mais freqüentada. Ela foi demolida. Em 1912, o local foi vendido para missionários canadenses. No terreno foi construído o Hospital Público Número Quatro.
Atualmente, entretanto, há aqueles em Kaifeng que anunciam suas raízes judaicas de modo prazeroso. Alguns tentaram, mas não conseguiram, que Pequim classificasse os judeus da China como minoria étnica nacional. Outros tentaram, também sem sucesso, atrair investimentos israelenses e de outros judeus para Kaifeng. Muitos viram recusados seus pedidos para emigrar para Israel, onde o status religioso dos moradores de Kaifeng não foi reconhecido porque na China a linha de transmissão religiosa é patriarcal.
Para o judaísmo dominante, filhos de mães judias são judeus. Filhos de mães não judias e de pais judeus não são judeus. Xu Xin, o único professor da China de Estudos Judaicos, estima que há entre quinhentas e mil pessoas em Kaifeng que são descendentes da velha comunidade judaica. Eles têm pouco contato entre si e poucos são tão fiéis às suas raízes étnico-religiosas como Zhao. O conhecimento da língua hebraica e de textos religiosos está há muito tempo extinto. A abstinência à carne suína é o único costume preservado. Mas alguns descendentes mais velhos, como Zhao, ainda têm lembranças distantes do cotidiano judaico. Zhao se recorda da celebração de lom Kipur e de outras festas judaicas que sua família comemorava quando ele era criança. Um registro de família de 14 gerações, escrito em hebraico e chinês, foi apreendido pelos guardas vermelhos durante a Revolução Cultural, diz ele.
Wendy Abraham, uma norte-americana estudiosa da China, que pesquisou a história judaica de Kaifeng, entrevistou os mais velhos descendentes da cidade nos anos 80. Shi Zhongyu, na época com 66 anos, contou que lembrava ter visto, numa caixa médica, o símbolo da Estrela de David bordado em um tecido de seda vermelha. Poucos sinais foram deixados pelos ancestrais judeus de Kaifeng. No chão de uma sala dos fundos do hospital, encontra-se uma laje redonda gravada com esculturas retas. Era a tampa do poço da velha sinagoga.
Subindo para o topo das escadas de um velho museu da cidade há uma porta com cartaz: "Exibição da História e da Cultura dos Antigos Judeus de Kaifeng", normalmente mantida trancada. Ali estão as mais significativas marcas da herança judaica: duas inscrições da velha sinagoga, de 1489 e 1512. A última diz, em parte: "O fundador desta religião é Abraão. Depois dele Moisés, que transmitiu as escrituras..." Uma pedra da sinagoga e reproduções de documentos que agora estão fora da China completam a pequena exibição. O curador do museu, Mo Huomin, diz: "Chineses comuns não estão interessados, mas nós abrimos para visitantes, estudiosos e grupos de estrangeiros. Poucos descendentes de Judeus de Kaifeng vêm aqui. Já que essas inscrições existem há muito tempo, todos as conhecem". As autoridades de Kaifeng estão incertas sobre como lidar com a excepcional história do judaísmo na cidade. "Nos últimos anos", diz Xu, "havia poucas pessoas em Kaifeng que marcaram suas carteiras de identidade chinesas como "youtai" (judeu em chinês). Infelizmente, eu ouvi que no ano passado o Escritório Público de Segurança pediu que eles trocassem a palavra "youtai" por outra coisa qualquer". Quando pedimos às autoridades governamentais para encontrar alguns dos descendentes de judeus de Kaifeng, os oficiais se recusaram a marcar os encontros. Talvez essas atitudes mudariam se a história dos judeus de Kaifeng se mostrasse mais proveitosa.
Desde 1993 há tentativas de encorajar investimentos de judeus em Kaifeng. "Em 1994, eu tive a idéia de uma Zona Especial para Judeus Estrangeiros de Desenvolvimento Econômico", diz Zhao. Outros projetos propostos incluíam uma fazenda, um hospital e planos de reconstruir uma sinagoga. "Investimentos judeus ou israelenses", diz Zhao, "iriam não somente ter um impacto econômico, mas também uma importância política que iria amarrar os laços judeus".
Mas tudo isso não levou a nada. Como Xu admite, "o ambiente para investimento não é favorável". O turismo, almejado pelos judeus do Ocidente, parece o setor mais favorável a ser promovido, mas Xia Feng, no Departamento de Marketing do Escritório de Turismo de Kaifeng, diz que não há planos para encorajar isso. Um problema é a insuficiência de coisas para serem vistas. Abraham desenvolve os "Tours da História Judaica da China", que no último mês trouxe o quarto grupo de turistas judeus dos estudos Unidos para Kaifeng. O chamariz de qualquer tour, é claro, é a possibilidade de encontrar alguns descendentes de judeus com memórias dos anos 30. Mas mesmo essa atração deve acabar logo.

* Tereza Poole é jornalista e escreveu este artigo originalmente no jornal "The Independent". Posteriormente foi publicado em Diáspora, com tradução de Maristella do Valle. E mais tarde publicado também na Revista Rio Total, enviado por Leon M.Mayer,presidente da Loja Albert Einstein da B'nai B'rith do Rio de Janeiro.