André Moshe Pereira*
A Aaron Ram, Judy Cohen, Rav Jules Harlow, Manuel Barreiro
Como podemos sistematizar uma sustentação do pensar da justiça e desejo na verdade? Uma Auseinandersetzung é estabelecida entre certas literaturas e a filosofia. Nestes diálogos as cartas não estão marcadas em avanço, isso significa que a filosofia hoje tem um papel decididamente político…talvez todos sejamos liberais! Mas outra atitude se impõe ao nível das várias instâncias da ética, do “messianismo” e da finitude humana.
A literatura em si-mesma não pode pré-formar, nem mesmo como comédia, o imaginário social por repensar os temas da nossa finitude e na ausência de algo como a existência dum herói trágico. Talvez a comédia humana prove insuficientemente o pensar da nossa condição humana. Que se passa pergunta Derrida, quando um grande pensador se submerge no silêncio, alguém a quem conhecemos a vida, a quem lemos e relemos, como trabalho do espírito, e a quem também escutamos, alguém de quem esperávamos uma resposta, como se a dita resposta nos ajudasse não só a pensar outramente, mas a ler o que pensávamos que já havíamos lido dele, uma resposta que se reservava tudo e tantas coisas mais que críamos haver reconhecido com a sua rubrica? O seu nome é Levinas ou Blanchot ou Derrida, ou Rav Akiva ou Moshe Rabeinu, ou Aaron Ram ou Judy Cohen!
A experiência de “trabalho” com Emmanuel Levinas é como o dissera Blanchot e Martin Buber ou Bernard Forthomme ou mesmo Jacques Derrida, interminável, a exemplo de todas as reflexões que são fonte e origem. Nunca deixamos de começar ou começar de novo nelas como fundamento do começo renovado que me oferecem e voltarei a descobri-las uma e outra vez em quase qualquer tema; reler e ler de novo Levinas é uma experiência de cúmulo de alegria, admiração e gratidão. Cúmulo duma necessidade satisfeita, que não é uma limitação mas uma força que obriga e nos obriga, por respeito ao outro a não deformar ou a retorcer o espaço de pensamento mas a ceder perante a curvatura heterónoma que nos relaciona com o outro na sua completude. Com a justiça como Levinas prefere referindo uma admirável elipse “ a relação com o outro, quer dizer, a justiça”, que responde à lei que dessa forma nos convoca a ceder ante a anterioridade infinita do outro na sua completude. A completude tem um nome mesmo de poesia da fenomenologia da dor e da alegria, com Manuel Barreiro, em Os Dias de Planalto II, Edição Garranus, Braga, 2005: 52, Edição como inscreve Manuel Barreiro na contracapa, no 60º aniversário da libertação de Auschwitz «para que nunca mais aconteça»: Meu amor, *tu que procuras fugir/da dor/ buscando/ o que te escapa/ como melros em debandada/ num prenúncio de trovoada. / Olha, todos os dias/ como os amores/ são sempre iguais, / só são tristes/ aqueles em que o estás. / Alegres são alguns/ dos meus dias de tristeza, / é que finjo, volta e meia, / que os meus não sejam sempre iguais. / Triste/ é eu só poder imaginar/ o que seria/ num dos teus de alegria.//
A primeira introdução à fenomenologia de Husserl que Levinas realizou iniciada em 1930 com traduções e leituras interpretativas, que irrigariam e fecundariam muitas outras correntes filosóficas. Em 1930 Emmanuel Levinas, um jovem de 23 anos escreve: o facto de que em França a fenomenologia não seja uma doutrina para tudo tem sido um problema constante para escrever este livro”. Ou a falar da “poderosa e original filosofia” do “senhor Martin Heidegger cuja influência se sente frequentemente neste livro”, ele mesmo recorda que “o problema ocasionado aqui pela fenomenologia transcendental é um problema ontológico no sentido preciso que Heidegger dá a este termo”. (Théorie de l’intuition dans la phénoménologie de Husserl, p. 7.). O segundo acontecimento, o segundo cisma filosófico, é o feliz traumatismo que lhe devemos (no sentido da palavra traumatismo que lhe dava prazer recordar, o “traumatismo do outro” que vem do Outro), ao ler e re-interpretar autores como Descartes, Kant e Kierkegaard, escritores como Dostoyevski, Kafka, Proust, – e difundia as suas palavras através de publicações, cursos e leituras ou palestras, na Escola Normal Israelita Oriental, no Colégio Filosófico, destacado tal tema no nosso texto A Intriga Ética e nas universidades de Poitiers, Nanterre e da Sorbonne) –, Emmanuel Levinas deslocou paulatinamente o eixo, a trajectória e inclusivamente a ordem da fenomenologia ou da ontologia, que havia introduzido em França desde 1930, até conseguir modelá-los com rigor sob uma condição inflexível e simples.
Como sabemos Lacan a re-notação que Lacan faz do herói numa forma que reavalia o ideal clássico, que é aquele que não podes trair. Mas o latim torna-se do latim “tradere” o que significa consumar um fim determinado a algo, a uma marca a um sentido, a uma injustiça ou em casos paradoxais, à justiça, precisamente e no caso da comédia alguém pode consumar a transmissão ou trair uma verdade imanente, a qual em tornar-se “pública”, revisita a distinção entre público e privado. Levinas entretece-se com estes roupames. Buscamos a falha de ironia em Levinas, suficientemente denunciado por Gillian Rose, mas especialmente em muito do conceptualismo pós-moderno. Finalmente avaliamos as homologias estruturais e o desejo e o que é o irrepresentável e o pensamento prioritário em Levinas e a função do das Ding em Jacques Lacan. Isso permite-nos repensar a refutação do inconsciente freudiano e explorar o significado da alteridade inconsciente, o self dividido, sem o que Emmanuel Levinas denomina a metafísica religiosa. “ Ética é ética por propósitos de bem da política” para bem da nova concepção da organização do espaço político. O «recurso» levinasiano oferece-nos a interrupção da depredação social e política que o «eu» ou o «nós» efectua sem por isso ser um agente ético ou escolher a responsabilidade; este imenso recurso é empregue mais economicamente, numa forma de perspectiva crítica.
Lembramos com isto a condição de estrangeiros que todos os judeus, somos. Numa metáfora de Berlin: “Os estrangeiros transformam-se em autoridades de primeira importância acerca dos naturais. Codificam a sua língua e os seus costumes, coligem os dicionários e as enciclopédias da tribo, interpretam a sociedade indígena para uso do mundo exterior. Ano após a no, cresce o seu conhecimento do mundo que os recebeu, e o mesmo se diga do seu amor por ele ou da sedução que exerce tudo o que esse mundo é e faz. Se os seus esforços tiverem sucesso, convencer-se-ão de que compreendem os naturais tão profundamente que se sentirão inseparavelmente unidos à sua civilização; convencer-se-ão de ser os seus melhores amigos, os seus paladinos e os seus profetas”. (Isaiah Berlin, O Poder das Ideias, Lisboa, Relógio d’Água, 2006:222). No entanto o problema é o excessivo interesse pela “tribo” pelos seus destinos, a peculiar paixão pelo rigor e pela verdade.
*Pres. KOaH