Tuesday, November 15, 2005

O que se está a universalizar?


André Veríssimo


Como veio a reconhecer um dos últimos discípulos de Adorno, o diagnóstico que estabelece o desenvolvimento linear de um público de «debate de cultura» a um público de «consumo da cultura» é demasiado redutor (Habermas). Esse diagnóstico subestima grosseiramente o desenvolvimento de capacidades críticas que se encontram associadas às novas manifestações culturais - de um público que é mobilizado por estas manifestações de forma muito complexa, não apenas de acordo com os padrões de uma recepção conformista (submissão à estrutura da oferta), mas também através de outras estratégias mais afirmativas, interpondo as suas próprias interpretações ou cambiando umas e outras de forma imprevisível (Hall, S.).
Se cabe aqui falar de um novo equívoco político da Teoria Crítica, isso deve-se tanto ao desconhecimento de determinados desenvolvimentos entretanto registados no mundo da cultura, quanto a uma atitude apriorística da sua parte de rejeição in limine de toda e qualquer forma desta nova cultura. Assim se auto-exclui a possibilidade de um conhecimento mais específico e rigoroso dos bens culturais, das suas características intrínsecas e das condições sociais concretas da sua existência (Adorno).
Certas culturas locais estão a reforçar os seus traços levando-nos a crer que o mundo continua fragmentado e não globalizado. O que se está a universalizar? Os padrões de consumo e de produção?
Como seria uma “civilização da simplicidade” (Gorostiaga), da qualidade de vida, da sustentabilidade, da igualdade e da alegria compartida?
Devemos criticar o “desenvolvimento sustentável” como uma contradição em si? As noções de “desenvolvimento” e de “sustentabilidade” seriam antagónicas? Devemos criticar toda a forma de desenvolvimento ou apenas a forma capitalista de desenvolvimento?
Certamente existe uma concepção capitalista de desenvolvimento sustentável e que é maioritariamente sustentada pelo movimento ecológico. Ela pode constituir-se numa armadilha para a pós-modernidade. Por isso, a pós-modernidade não pode inspirar-se apenas numa concepção de desenvolvimento. O desenvolvimento sustentável só pode, de facto, enfrentar a deterioração da vida no planeta, na medida em que está associado a um projecto mais amplo, que possibilite o advento de uma sociedade justa, equitativa e includente. O referencial teórico-prático da pós-modernidade, porém, é mais amplo. Existem dois modos de ser-no-mundo: o trabalho pelo qual modelamos e intervimos no mundo e o cuidado pelo qual nos sentimos responsáveis por ele. O cuidado exige ternura, carinho, afecto, compaixão e renúncia ao seu domínio. Eles não são modos de ser antagónicos. Eles são complementares e podem constituir-se na base de sustentação da pós-modernidade.
O problema do fim do sujeito que a teoria da pós-modernidade hoje coloca, retoma uma crítica mais antiga à noção de sujeito que tomou forma no interior do próprio pensamento moderno: o sujeito como autonomia individual, concebido em termos cartesianos e kantianos. Aqui se inclui o papel de debilitação da acção individual do sujeito. À psicanálise freudiana deve-se a demonstração convincente da ilusão que consiste na ideia de uma absoluta transparência das necessidades do indivíduo. Ao mesmo tempo, a partir da filosofia da linguagem, segundo Wittgenstein, o outro pressuposto fundamental da noção tradicional de autonomia - a intencionalidade do sentido da acção (comportamental e linguística) - foi também posto em causa. Assim, convergentemente mas a partir de ângulos distintos, estas duas críticas puseram em evidência o poder de certas forças estranhas ao sujeito, que condicionam de modo determinante o seu desempenho; forças que o sujeito não controla inteiramente e das quais, em geral, nem sequer chega a tomar consciência, mas que nem por isso são de menor importância para a sua constituição.
Perante o poder destas críticas, como resiste a ideia de sujeito? De que forma se poderá continuar a sustentar a noção de identidade? A identidade é fluida, evanescente, simbólica e diabólica, errática, fragmentária, hoje, como sintetiza Moisés Lemos Martins em textos como Para uma Inversa Navegação entre outros.
A questão que daqui decorre é, pois, inequivocamente, a da necessidade de reconstituir a própria forma de conceber a identidade; e adjacente a esta, a do papel específico que pode caber aos media neste trabalho reconstitutivo.
Entre a persistência numa visão puramente idealizada do sujeito e o puro e simples abandono da ideia de autonomia, creio que é possível descortinar outro caminho para a identidade nos nossos dias: a identidade que persiste numa ideia normativa de autonomia, mas que não esquece determinados limites estruturais próprios desta; a identidade ainda constituída na base da liberdade e auto-determinação do indivíduo, sendo estas porém compreendidas "não em oposição às forças contingentes que iludem o controlo individual, mas como uma forma particular de organização destas mesmas forças"(Honneth).
O reconhecimento é o mecanismo por excelência da intersubjectividade. E se convencionalmente o seu âmbito se restringe à interacção social, ou seja, à comunidade concreta dos encontros sociais, hoje em dia uma outra fonte essencial da experiência veio juntar-se-lhe: a de um universo de comunicação virtualmente ilimitado, que se tornou acessível graças aos modernos dispositivos tecnológicos de mediação, ou seja, uma cultura dos media que se transformou no palco privilegiado das lutas dia-bólicas pelo reconhecimento.