Saturday, November 26, 2005
As Trovas do Bandarra
José van den Besselaar*
Quase tudo o que se sabe com certeza da vida de Gonçalo Anes Bandarra consta do seu processo inquisitorial, publicado por Teófilo Braga na sua História de Camões (t. I, Porto 1873). Ele deve ter nascido por volta de 1500 na vila de Trancoso, que foi também terra natal de outro autor popular seiscentista: Gonçalo Fernandes Trancoso, que cativou muitas gerações de leitores portugueses com os seus edificantes Contos de Histórias de Proveito e Exemplo. Antes da publicação do seu processo, julgava-se que ele era pobre e de origem muito modesta. Mas na sua declaração ao Tribunal lemos que «fora rico e abastado, mas que queria mais sua pobreza em dizer a verdade e o que cumpria à sua consciência, que não dizer outra cousa». Também se julgava que o sapateiro não sabia ler nem escrever, mas que ditava as suas profecias ao Padre Gabriel João de Trancoso, o qual seria o seu amanuense, tal como o fora Baruch do profeta Jeremias. Era assim que se interpretava uma das suas trovas (aliás, inautênticas) do seu chamado «Terceiro Corpo»: Eu componho, mas não ponho as letrinhas no papel, que o devoto Gabriel vai riscando quanto eu sonho. Hoje se sabe que Bandarra não era nenhum analfabeto. Ele mantinha correspondência com várias pessoas do Reino, entre as quais se achavam figuras importantes, tal como o Dr. Francisco Mendes, médico do Cardeal-Infante D. Afonso. Ele lia e relia a «Brívia» (=Bíblia) em linguagem, sem dúvida, um texto manuscrito, que tomara emprestado a um certo João Gomes de Gião e tivera uns oito anos em casa. Dotado de uma memória fidelíssima, sabia de cor longos trechos dos Livros Sagrados, sobretudo dos profetas do Velho Testamento. Quando, depois de restituído o livro ao seu dono, lhe acontecia que já não se lembrava de um texto bíblico, consultava o Dr. Álvaro Cardoso ou o clérigo Bartolomeu Rodrigues que tinham uma Bíblia latina e lhe refrescavam a memória. Assim ele acabou passando por oráculo em assuntos bíblicos, sobretudo entre os cristãos-novos, que eram muito numerosos na Beira. O sapateiro devia ter também conhecimento das profecias atribuídas a Santo Isidoro, através das Coplas do cartuxo castelhano Pedro de Frias e outros versejadores espanhóis. Sabemos que o já referido Dr. Francisco Mendes o consultou sobre a interpretação de uma trova de Pedro de Fritas. Estas coplas castelhanas compenetravam-no da vinda de um Rei Encoberto, predestinado para desbaratar o Império Otomano e estabelecer a Monarquia Mundial, — o antigo sonho de tantos joaquimistas no fim da Idade Média. É muito provável que Bandarra chegasse à ideia de compor as suas trovas, tomando por modelo as coplas do país vizinho. Era um homem extraordinário, que aliava a uma memória fabulosa o talento de fazer com facilidade versos populares. As suas profecias rimadas, muito mais bíblicas e também mais patrióticas do que os seus modelos espanhóis, foram-se rapidamente divulgando pelo país, e não tardaram a encontrar leitores na capital do Reino. Os cristãos-novos, que já antes o tinham consultado como uma espécie de rabi, passaram agora a venerá-lo como um profeta solidário com eles nas suas esperanças messiânicas. Sabemos que Bandarra, por duas vezes, se deteve por algum tempo em Lisboa (ca. 1531 e em 1539), onde era muito procurado pela gente da nação. Tal alvoroço devia despertar as suspeitas da Inquisição recém-estabelecida. Bandarra foi preso e levado para Lisboa (1540). A Mesa ouviu diversas testemunhas e impôs-lhe (3 de Outubro de 1541) um castigo relativamente brando: o de abjurar solenemente as suas trovas na procissão do auto-da-fé do dia 23 do mesmo mês. Pela sentença se pode ver que Bandarra não foi acusado de judaísmo, nem sequer passava por cristão-novo. O que se lhe imputava era causar alvoroço entre os cristãos-novos com as suas trovas, que eles tendiam a interpretar em sentido judaico; além disso, causava suspeita que ele, homem «sem letras», se arvorava em intérprete da Sagrada Escritura. A partir de 1541 não se ouve mais nada do sapateiro de Trancoso. Segundo uma opinião muito divulgada, ele teria falecido por volta de 1550. Mas, como já observou Diogo Barbosa Machado na sua Biblioteca Lusitana, a data da sua morte deve ser posterior a 1556, porque a 23 de Março deste ano foi confirmado na dignidade episcopal D. João de Portugal, bispo nomeado da Guarda. Foi a ele que Bandarra enviou um exemplar das suas Trovas, precedidas de uma dedicatória elogiosa. Se aceitarmos a dedicatória como autêntica — e creio que há motivos para impugná-la —, devemos concluir que o profetarimador, uns quinze anos depois da solene abjuração das suas trovas, no foro íntimo ainda acreditava nelas, e que o bispo da Guarda, que tinha um carácter independente e não fugia a brigas com ninguém, se dignou aceitá-las. Bandarra morreu, mas não lhe morreram as trovas. Aliás, já na vida do autor sabemos que «se enchera a terra das ditas trovas» (como lemos no processo), e a difusão das profecias continuava depois da morte do profeta, apesar da ordem do Santo Ofício de as apresentar ao tribunal. Os meninos da Beira aprendiam a ler pelos toscos versos do sapateiro de Trancoso. No início do século XVII, D. João de Castro escreve assim: Ora, como fossem infinitos os traslados que delas [sc. das trovas] têm corrido té ao presente, andam mui cheas de erros por muitas causas. Primeiramente, por se não começarem a dar a elas senão pessoas idiotas [=de pouca cultura], que nenhua certeza guardam no trasladar; e pelo cardume grande que ummente a gente houve de cópias, espalhadas principalmente pela Beira, onde comnão é muito polida nem atentada no escrever. Além disto, como eram tão escuras e não as veneravam por profecias, dando-se a elas por não sei que curiosidade ou mistério secreto, não lhes dava nada errar em nas [sic], trasladando-as uns de meas, outros deixando versos ou palavras, e metendo em seu lugar outras, ou trespondo-as como cada um queria, com haver nunca quem emprendesse apurá-las, por se não darem por achados delas os homens doutos ou de algua opinião, polas terem por patranhas e correrem-se de lhe nelas falarem. Nestes termos D. João de Castro se queixava do mau estado «Gonçalo Anes Bandarra» (gravura do rosto da edição de 1603 da Paráfrase, de D. João de Castro) das cópias das trovas, lastimando que os intelectuais de Portugal, neste assunto, não se dessem por achados. Ele não tinha nenhuma inibição de testemunhar publicamente a sua grande veneração pelo profeta de Trancoso. Fez imprimir uma grande parte das profecias rimadas, julgando-as de um comentário ignas erudito. Para ele, o grande assunto do Bandarra era D. Sebastião, que, depois da sua derrota em Marrocos teria sido perseguido e encarcerado pelos Castelhanos em Itália por volta de 1600. D. Sebastião vivia ainda, e havia de aparecer. O autor tinha-o visto em Veneza humilhado e desprezado, mas esperava tornar a vêlo triunfante e glorioso. Além de ser o pai do sebastianismo ortodoxo, D. João de Castro merece também o título de ser o primeiro exegeta erudito das trovas do Bandarra. Depois da sua morte (1625) interromperam-se, durante algum tempo, os comentários eruditos. Entre os vaticínios alegados pelo astrólogo português Manuel Bocarro, messianista famoso, mas pouco estudado, não ocorrem as trovas do Bandarra. Mas o bandarrismo popular não morreu. Pelo contrário, fomentado pelo clero português, o prestígio do profeta de Trancoso foi crescendo com as humilhações cada vez piores da pátria. Centenas de leitores procuravam nas trovas motivos de consolo e esperança. Elas eram leitura proibida, incluídas como estavam, desde 1581, no «Catálogo dos Livros Proibidos», mas o anátema, em vez de amedrontar os leitores, excitava-lhes a curiosidade. Em fins do terceiro decénio do século XVII, as esperanças na libertação nacional começavam a concretizar-se na pessoa de D. João, o então Duque de Bragança. Conformemente, as trovas do Bandarra passavam a ser estudadas e interpretadas numa perspectiva bragantina. Eram sobretudo os seguintes versos que aos Restauradores pareciam carregados de um profundo significado profético: Já o tempo desejado é chegado, segundo o firmal assenta. Já se cerram os quarenta, que se ementa por um Doutor já passado. O Rei novo é alevantado, já dá brado, já assoma a sua bandeira contra a Grifa parideira, lagomeira, que tais prados tem gostado. Saia, saia esse Infante bem andante! O seu nome é Dom João! É verdade que D. João de Castro, no seu comentário de 1603, em vez de «quarenta», lera «oitenta» ou «noventa», e em vez de «Dom João», defendera a lição «Dom Foão». Mas as novas lições, além de confirmadas por algumas (muitas?) cópias, tinham a grande vantagem de se acomodar perfeitamente à Aclamação de D. João IV no dia 1 de Dezembro de 1640, quando «já se cerravam os quarenta». Ele era Rei novo e «alevantado» (=aclamado), que desfraldou a bandeira lusitana, marchando contra «a Grifa parideira», que era a Casa de Habsburgo, proverbialmente conhecida por causa dos seus casamentos proveitosos. Parecia aos Restauradores que Bandarra profetizara a Aclamação e até com alguns pormenores notáveis. Assim ele ficou incluído na lista dos profetas que tinham cantado as futuras glórias de Portugal. Aí o sapateiro estava em boa companhia, vendo-se cercado de grandes figuras, tais como um Santo Isidoro, um São Bernardo de Claraval, um São Frei Gil, um São Francisco, e muitos outros. A interpretação sebastianista do Encoberto cedera a uma interpretação nitidamente joanista. António Vieira foi o grande porta-voz desta corrente. Porta-voz, e dos mais pertinazes, mas não inventor. A nova interpretação das trovas já existia, quando Vieira, na Primavera de 1641, regressou à metrópole. O país restaurado embriagava-se do bandarrismo joanista ou joanismo bandarrista, exaltação essa que se havia de prolongar por mais de dez anos. O nome do Bandarra ressoava em sermões e poemas, os seus vaticínios eram citados em obras de propaganda, em tratados eruditos, e até em petições oficiais dirigidas à Santa Sé. Ao sapateiro se fez uma rica sepultura de pedra, na igreja de São Pedro de Trancoso, lavrada com este letreiro: «Aqui jaz Gonçalianes Bandarra, natural desta Vila, que profetizou a Restauração deste Reino, e que havia de ser no ano de 1640 por el-Rei D. João IV, nosso Senhor, que hoje reina. Faleceu na era de 1545». No aniversário da Aclamação, a imagem do Bandarra estava exposta no altar-mor da Sé de Lisboa, como se faria a um santo. Alguns anos depois, D. João IV deu uma capela de muito boa renda a um certo Miguel Dias, descendente do Bandarra. Contudo, ainda não existia uma edição completa das trovas do Bandarra. O livro publicado por D. João de Castro em Paris (1603) continha apenas uma parte das profecias, que andavam explicadas em sentido sebastianista, agora obsoleto. Urgia apresentar ao público uma edição de todas as trovas em que se frisasse a actualidade do profeta. A edição saiu em 1644 em Nantes, sob o patrocínio do Conde da Vidigueira, então embaixador de Portugal em Paris. É um livrinho hoje extremamente raro: não existe, quanto eu saiba, em nenhuma biblioteca pública de Lisboa. João Lúcio de Azevedo, o benemérito estudioso do sebastianismo e bandarrismo, nunca conseguiu vê-lo, devendo contentar-se com uma edição do século XIX (Porto, 1866). Existe na Biblioteca da Universidade de Coimbra, onde ainda não figura no Catálogo Geral (cota V.T. 17.8.5). Graças a um gesto amável do ilustre sr. Professor Doutor Aníbal Pinto de Castro, disponho agora de um microfilme deste livro precioso. O opúsculo traz, no frontispício, este título: TROVAS DO BANDARRA Apuradas e impressas, por ordem de hum grande Senhor de Portugal. Offereçidas aos verdadeiros Portueses, devotos do Encuberto. EM NANTES. Por GVILLELMO DE MONNIER, Impressor del Rey. M.DC.XXXXIIII.
( Continua) para mais informação veja.