Patrícia Chiganer Lilenbaum
A busca por uma visão crítica de um judaísmo diaspórico no Brasil passa por um constante trabalho de herança e de construção e desconstrução de identidade. Cíntia Moscovich, Moacyr Scliar e Samuel Rawet são escritores que revelam, de maneiras diferentes, uma postura autofágica com relação a o que herdar do legado judaico; as inquietações e questionamentos de suas literaturas revelam que a transformação é necessária para que exista um Judaísmo vivo. The search for a critical vision on the diasporic Judaism in Brazil relates to a constant work of inheriting and construction and deconstruction of identity. Cintia Moscovich, Moacyr Scliar e Samuel Rawet are writers who reveal in different ways an autophagic attitude towards what to inheriting from the Jewish legacy; the restlessness and doubts in their literatures show that change is necessary to keep Judaism alive.
Sinto no momento em que escrevo estas linhas como se estivesse na eminência de um grande e surpreendente acontecimento, uma descoberta de algo que sempre esteve presente, mas nunca expressado e transformado em palavras. É um movimento difícil o de descobrir enquanto se cria. Nas páginas de um caderninho amarelo-fosforescente – talvez para me iluminar – venho anotando há alguns meses fragmentos de idéias, tentando capturar súbitos caminhos, revelações. Vou anotando minhas indagações – responderei a elas em determinado momento? – e brinco de suscitar polêmicas, de colocar o dedo na ferida – mas a ferida é minha. O que torna a brincadeira muito séria.
Talvez seja por demais dramático falar em ferida. No entanto, é uma metáfora interessante: quando pensamos em feridas pensamos em pele, em corpo – algo concreto, pessoal, íntimo. As feridas simbólicas são um talhe sem marca física, e podem demorar muito mais tempo para cicatrizar. Às vezes feridas não são sanguinolentas – são apenas uma farpa, nos incomodam, insistentes, mas não são mortais. Podem ficar sob a superfície por toda a vida, mas indicam por leve protuberância sua existência discreta e incômoda. Podem fazer parte de nós. Podemos nos acostumar. Até que chega o dia que decidimos cutucá-la.
Cutucar significa perguntar, e quando fazemos isso tendemos a ter mais perguntas do que respostas. Academicamente, somos levados a fechar perguntas, dar-lhes uma resposta ao menos temporária, ainda que não satisfatória. Pessoalmente, no entanto, as perguntas continuam a incomodar, instigar, e é a busca por suas respostas que nos mantém conscientes de nossos limites, que nos mantém humildes, enfim: vivos e abertos ao conhecimento.
Esperamos o Messias, esperamos as respostas; enquanto nem um nem outro chega (chegarão um dia?), temos todo o tempo e tormento para viver as perguntas, a espera, a busca. Já disse Walter Benjamin que não há Messias enviado do céu, mas sim que o Messias somos nós: cada geração possui uma parcela de poder messiânico e deve se esforçar por exercê-lo.
Isto é um misto (a rima casual inapropriada para trabalhos acadêmicos) de confissão acadêmica e pessoal, uma busca por caminhos a serem seguidos, que não estão tão claros e bem sinalizados, o que o torna uma espécie de work in progress. Talvez alguém chamasse a atenção para o fato de que uma confissão já traz em seu próprio conceito um caráter pessoal, e que ser ela acadêmica ao mesmo tempo é uma impropriedade, pois o que é acadêmico é público, profissional, separado da ordem pessoal. Separamos nossas vidas em áreas tão bem seccionadas que nos tornamos às vezes incapazes de enxergar as conexões, as causas e conseqüências. Separamos para melhor organizar e entender, e acabamos por impedir a verdadeira compreensão total de nossas escolhas, posições e ações.
Escrevo essas linhas no final de 2005, em meio a indagações sobre como dar prosseguimento à minha pesquisa de doutorado. No início do ano, entrei no programa de doutorado em literatura brasileira da PUC com a intenção de estudar Moacyr Scliar e Isaac Bashevis Singer. De certa forma, era um prosseguimento da lógica comparativa aplicada no mestrado, quando estudei Guimarães Rosa e James Joyce, dois autores de minha preferência que se colocavam como um desafio. Autores de uma envergadura que assustava – e o objetivo era justamente tirar a aura de inatingíveis que ambos carregam. Todavia, no caso de Scliar e Singer, o objetivo não se extinguia como literário e acadêmico, ou como fruto de uma admiração de leitora. Não era uma escolha que indicava apenas o evidente: ser eu amante da literatura, paixão já concretizada com graduação, mestrado e milhares de horas livres gastas me embrenhando em sebos, bibliotecas, livrarias, lendo e sonhando com o que ler. Dessa vez, o motivo mais evidente da minha escolha era ser eu judia. Posso dizer que, se Scliar e Singer não fossem judeus, não me interessariam no momento como objeto de pesquisa.
Assim, embutida na minha escolha de autores, havia a intenção primeira de estudar literatura judaica. Ou literatura escrita por autores judeus, já que o termo literatura judaica é de difícil definição. Literatura que trouxesse explicitamente temas judaicos, ou que implicitamente me revelasse uma visão de mundo que eu reconhecesse como judaica. Ou literatura que não abrisse qualquer porta ao universo judaico, mas escrita por um judeu, o que me permitiria perscrutar, procurar minúcias, reminiscências – repentinamente, o elemento judaico se impôs e norteou minha escolha.
Unir literatura e judaísmo foi uma novidade em minha trajetória. A literatura, que sempre esteve no limiar do pessoal e do acadêmico, recebia agora a adição de um fator até então exclusivamente pessoal. A literatura agora era dominada por um fator marcadamente meu, com o qual teria que arcar de maneira acadêmica – isenta? – transformando-o num objeto de estudo. E eis que percebo que isso não é tão simples como eu imaginava: estudar autores judeus significa um acerto de contas com a minha própria identidade judaica. A busca não é apenas acadêmica, profissional, intelectual – é também, e profundamente, pessoal e emocional.
A isso se soma uma contradição: participando de um programa de literatura brasileira, por que me direciono à literatura judaica, que carrega um estigma de marginal, estrangeira? Seriam as duas literaturas excludentes?
Provavelmente não, tal qual faz parte de minha identidade ser judia e brasileira. Estou num espaço entre fronteiras, um entre-espaço, e é este espaço dúbio, dentro e fora ao mesmo tempo, que constitui meu solo de enunciação. Trata-se, como bem sintetiza o título do livro de Moacyr Scliar e Márcio Souza, de um espaço Entre Moisés e Macunaíma. E, como está inscrito no próprio nome de Moacyr Scliar, é uma ponte entre dois mundos: Moacyr, nome essencialmente brasileiro, oriundo do romance Iracema de José de Alencar; Scliar, sobrenome estrangeiro, estranho aos ouvidos; unidos, formam um terceiro elemento, receptáculo de heranças mescladas.
É curioso pensar na constelação de nomes que me vêm à mente quando penso em literatura escrita por judeus – chama-la-ei assim primeiramente, de maneira ampla – ou em obras da área de Humanas que foram de pensadores judeus. Franz Kafka, Sigmund Freud, Walter Benjamin, Primo Levi, Eli Wiesel, Elias Canetti, Scholem Aleichem, Philip Roth, Jacques Derrida, Amós Oz – um grupo heterogêneo quanto a país, língua, mas com o elemento judaico presente. Lembro-me das minhas idas à biblioteca do colégio, e das primeiras leituras de Kafka, A Metamorfose, O Processo, Cartas ao Pai. Meu fascínio pela literatura de Kafka se fortalecia com o fato de saber ser ele judeu, embora sua literatura seja aparentemente ausente de elementos judaicos. Era um orgulho esquisito, um regozijo por pertencer ao mesmo povo que Kafka. O mesmo acontecia com as obras completas de Freud que minha mãe, psicóloga, adquirira, e que me olhavam de altas estantes – eu podia não saber ao certo do que tratava Freud, cuja obra só comecei a estudar na Faculdade, mas sabia que ele também era do mesmo povo. Clarice Lispector foi outra surpresa – também judia, ainda que velada.
Anos se passaram, e fiquei mais crítica e consciente com relação às questões da identidade, do poder, da cultura, mas curiosamente continuo com esse mesmo regozijo – como se esses nomes me integrassem num mundo íntimo e extraordinário, como se o brilhantismo desses homens de alguma forma me tocasse e me fosse transmitido – algo emocional e nada racional. Algo que me faz criar um elo entre a menina da foto que fica sobre a minha mesa – uma foto minha aos cinco anos, com o cabelo coberto por um lenço, as mãos estendidas sobre duas velas do dia de Shabat, o sétimo dia, do descanso, murmurando a reza em hebraico – e todo o universo da cultura judaica. Kafka, Freud e também a menininha da foto fazem parte do povo do livro. Que eu durante um bom tempo pensasse ser esse livro qualquer livro, como um símbolo de conhecimento, e não a Torá especificamente, não invalidava meu sentimento de pertencimento. E ainda prefiro a referência genérica a livros em geral do que a um especificamente.
Povo do livro ou Povo de Deus – termos que definem os judeus, sendo que o último é um constante alvo de crítica; objetivamente analisado, realmente exclui outros povos. Povo. Uma idéia que desde a infância nos é transmitida: não seríamos uma religião, mas um grupo mais complexo, que possui outros atributos além do de ordem teológico. Não pretendo colocar essa idéia por terra, apesar de reconhecer que é passível de desconstrução, uma desconstrução talvez até necessária.
Povo é um conceito de difícil definição, imbuído de certo orgulho, mas que traz a noção de unidade para um grupo diversificado e espalhado pelos quatro cantos do mundo. Falar de povo é falar de nação, de um grupo que se apreende como um conjunto já edificado e unificado, por costumes, língua, território. São homens que se mobilizam para e em nome da História: não há povo sem tradição.
No caso dos judeus, o conceito de povo é de aplicação irresistível, apesar de discutível. A unidade de língua não é uma realidade. O hebraico permaneceu como língua litúrgica até a criação do Estado de Israel em 1948, e passou por várias transformações para voltar a ser uma língua viva, cotidiana, do século XX. O local geográfico é menos ainda uma referência. Desde que os judeus vivenciaram sua segunda e irreversível diáspora, em 70. D.C., que os dotou de feições variadas ao redor do globo, a unidade territorial findou e nunca mais foi retomada. A partilha da Palestina fundou um Estado judeu, mas a representatividade judaica é tão ou mais legítima fora de Israel do que no Oriente Médio atualmente. Se há dois mil anos já havia uma grande diversidade de correntes judaicas – como mostra de maneira bem humorada o filme do grupo britânico Monty Python, A Vida de Brian – após a dispersão a diversidade não é apenas religiosa. Não há uma definição única de o que é ser judeu no século XXI.
De fato, é difícil para um judeu ashkenazi (da Europa) enxergar suas semelhanças com um judeu sefaradi (oriundo da Península Ibéria, e regiões da África), e é ainda mais difícil que os dois se identifiquem com os judeus negros, os Falashas, uma tribo que ficou isolada na Etiópia até o início de 1980, quando foi montada uma gigantesca operação para levá-la a Israel. A essência do judaísmo é difícil de ser definida, mas está ligada fortemente à idéia de origem comum, ainda que essa já diste de alguns milênios. Ao se falar em povo, as diferenças parecem convergir para uma confortadora idéia de pertencimento a uma macrounidade, que superaria a diáspora. Ao se falar de povo, estamos estranhamente negando o produto da diáspora, a diversidade irreversível.
A diáspora judaica traz um senso de tristeza, punição, negatividade. Como se a dispersão e conseqüente diversidade fossem uma ameaça à sobrevivência do Judaísmo. Como se apenas em Israel pudéssemos ser verdadeiramente judeus – e de fato há entre as mitzvot (os mandamentos judaicos) várias que só são realizáveis na terra de Israel. Essa idéia liga a identidade judaica a uma essência única, atemporal e principalmente religiosa. Porém, para muito judeus que se consideram como tais, a esfera religiosa passa ao largo do seu senso de pertencimento ao Judaísmo. Ser judeu parece carregar uma essência para além da religião.
Moacyr Scliar considera que a busca da identidade é algo inato ao ser humano. Ao falar da identidade judaica, ele considera que existem três maneiras de ser considerar judeu. A primeira é pelo viés religioso: ser judeu seria ser membro de certa religião, com determinado ritual, templo e mentor religioso – o rabino. Uma religião definida e estruturada, apesar de não apresentar a hierarquia da Igreja Católica. Uma religião que possui várias correntes: ortodoxos, conservadores, liberais. O segundo modo de ser judeu, que se afirmou no final do século XIX e chegou ao auge em 1948, com a formação do Estado de Israel, é a identidade sionista, ou seja, a parcela que diz respeito à aspiração milenar do povo judeu pela volta à terra prometida (o que traz também um lado religioso, mostrando que não é simples separar estanques as identidades), cuja concretização máxima seria a aliá (em hebraico, elevação), ou seja, morar em Israel definitivamente, fazendo o movimento de volta à origem.
Há quem não seja religioso, mas não pode desprezar o papel da religião em sua vida. Há quem, além disso, não seja sionista, mas nem por isso não se emocione ao tocar o Muro das Lamentações em Jerusalém ou ao entrar em bunkers na Colina de Golan, da época da Guerra de Yom Kippur de 1973, como aconteceu comigo em janeiro de 2004. Ser judia, para mim, não se fundamenta na religião e no desejo de aliá, o que não quer dizer que esses não exerçam um papel em minha vida.
O psicanalista Renato Mezan, ao empreender – como também já o fez, por outro ângulo, o historiador Yerushalmi – o estudo das relações entre a Psicanálise e o Judaísmo, acabou por analisar a carta de uma ex-aluna, que lhe escreveu em meio a dúvidas sobre como manter sua identidade judaica na passagem do ambiente fechado da escola judaica para a universidade e suas infinitas possibilidades. Lembro de ler a carta e a resposta de Mezan, e de ter sentido que se tratava de uma carta endereçada a mim. Ao falar de como muitos lidam com a sua identidade judaica, Mezan desnudou o fato de que sentimos culpa por não mantermos a tradição, mas de mesmo assim querermos manter essa indefinida identidade judaica que muitas vezes se apresenta para nós em aspectos mais superficiais em nossas vidas, algo como um perfume, um aroma que nos traz o conforto afetivo do pertencimento. Usar um cordão com uma Magen David (estrela de david) ou um hamsa (uma mão que simbolizaria proteção) como pingentes, ou colocar uma mezuzá (um fragmento da Torá que traria proteção ao lar) na porta de casa, ou gostar do gefilte fish (um bolinho de peixe adocicado) preparado pela avó, ou gostar de ler autores judeus...aspectos superficiais, sob certo ponto de vista, porém essenciais. E assim chegamos à terceira identidade judaica que Scliar identificou: a identidade cultural.
Ser um judeu cultural é ser o judeu menos definido, pois ser religioso implica em seguir rituais, em ir à sinagoga; ser sionista implica em se engajar, ir para Israel – os religiosos e os sionistas têm algo definido para fazer, atividades que os caracterizam e afirmam sua identidade. O judeu cultural não possui esses comprometimentos. Ele aprecia a História, o pensamento, a arte, tudo o que foi criado sob o signo do Judaísmo, embora suas ações não tragam sinais marcados. Na verdade há um comprometimento, mas esse está longe de ser objetivo.
Por me considerar uma judia cultural, sempre questionei muitos aspectos da vivência do Judaísmo. Figuras eminentes da comunidade judaica mundial, como o Rabino Steinsaltz, vêem como extremamente negativa, para a continuidade do Judaísmo, a identidade judaica que é somente de base cultural. O que é compreensível, visto que o século XX assistiu a uma vertiginosa queda numérica de judeus, em grande parte fruto do genocídio nazista, o Holocausto, a Shoah, um evento-limite, catastrófico. Após a Shoah, ser um judeu virou sinônimo de ser um sobrevivente, com um compromisso ético de levar avante a História de um povo quase dizimado. Porém, levar avante essa História requer a consciência de que é uma História múltipla, e que a tradição judaica será sempre modificada, e que isso não coloca em risco sua sobrevivência – antes a funda. A destruição catastrófica que a Shoah representou é absurda e incompreensível, é um pesadelo da História e uma pulverização em cinzas de um modo de ser e pensar – uma destruição fatal, extremamente negativa. Porém, o que restou não está a salvo de uma outra espécie de destruição, em outro nível. Um legado, para ser herdado, deve em parte ser destruído.
Essa idéia aparentemente assustadora, a tiro das minhas leituras de Jacques Derrida – também um judeu. O Judaísmo – seja a religião, a história, a cultura – não pode ficar intacto, não deve. O que não muda e não atinge uma nova forma permanece como um espectro, uma figura do passado que ainda não atingiu o futuro, e assombra o presente. Evidentemente não podemos ignorar os espectros. Devemos enfrentá-los, vê-los como aliados, conjurá-los. O primeiro passo para se aproximar de um espectro é o trabalho de luto: houve a morte, mas resta a herança. E herdar é uma tarefa, é um trabalho. Só herdamos o que somos capazes de herdar. Não recebemos passivamente um legado, tal qual tivéssemos nosso nome em um testamento: o ato de herdar implica em escolher certos aspectos em detrimento de outros. Uma herança deixa de ser um arquivo e passa a ser matéria viva na medida em que a filtramos, peneiramos, escolhemos. O legado herdado é reafirmado pela escolha – nunca é possível herdar tudo. O judaísmo se manterá vivo enquanto formos capazes de herdar dessa forma.
É preciso uma nova postura: considerar a diáspora não como uma queima de arquivo, mas como um multiplicador de espectros, de possibilidades, de maneiras de ser judaicas. Unificar acaba por ser uma ameaça ao mecanismo de sobrevivência do Judaísmo. A Shoah – uma queima de arquivo bárbara, para além do poder de representação da linguagem – significou a destruição do antigo universo judaico europeu, e houve uma perda irreversível do legado a ser herdado – porém, o legado restante, ainda assim, não será integralmente herdado. Como disse Isaac Singer, não é mais possível voltar completamente ao Shtetl (as aldeias judaicas que existiam no leste Europeu, em que a vivência judaica ficava isolada e preservada); é preciso criar algo entre o Shtetl e a civilização atual.
Criar esse algo é deveras complicado. Ao fundar minha identidade na cultura, e não na religião ou no sionismo, fundei um gosto por enxergar o caminho do questionamento como o único possível para manter o Judaísmo vivo. A idéia de que o Judaísmo é um conjunto de saberes, leis e atos a serem passados intactos de geração a geração não ecoa na minha vivência judaica. Embora pareça quase uma heresia, acredito que a sobrevivência passa pela transformação, que implica em destruição. E pensando na destruição como mecanismo de sobrevivência, e não como ameaça à sobrevivência, veio-me o termo autofagia.
Herdar significa trabalhar, fazer um esforço: escolher. E escolher implica em destruir. Autofagia (em que auto é próprio e fagia é comer), conceito da área da Biologia, em que uma célula ou tecido libera enzimas digestivas dentro de suas estruturas, que acabam por serem auto-digeridas, serve como metáfora para a necessidade de reciclagem, de se destruir para se preservar. A herança de um legado é autofágica: é preciso se devorar para sobreviver.
Dessa forma, defino minha identidade judaica como autofágica: sou judia na medida em que realizei um trabalho de herança, e que fui capaz de herdar, por hora – porque o trabalho de herança não finda, é constante, tal qual a construção da identidade – elementos como a Magen David, a hamsa, a mezuzá, o guefilte fish, algumas datas judaicas, como o Pessach e o Rosh Hashaná, o terror, a perplexidade e a curiosidade mórbida pela Shoah, bem como o senso de ser uma sobrevivente; algumas idas esporádicas à sinagoga no Shabat, várias lembranças emotivas de uma viagem a Israel, curiosidade sobre a História judaica, disposição infinita para debater sobre o conflito palestino-israelense... e uma fascinação por literatura escrita por judeus.
Assim, os caminhos da literatura me levaram novamente para meus questionamentos. Estudo autores judeus para estudar a mim mesma, como buscando encontrar neles esse elemento autofágico que me parece fundamental e que me define como judia. Ver em autores judeus modernos e não na Torá a chave para uma compreensão da minha identidade judaica já é um aspecto autofágico. Porém, desejo, além disso, descobrir em que medida esses autores rastreiam uma tradição perdida, um passado cristalizado, ou realizam a autofagia, a releitura e transformação desse grande legado judaico.
Ao tentar definir que autores judeus – sem ainda conseguir definir o que é um autor judeu ou o que é literatura judaica – que estudaria, li alguns escritores brasileiros de origem judaica – o já mencionado Moacyr Scliar, Clarice Lispector, Samuel Rawet, Bernardo Ajzenberg, Cíntia Moscovich. Encontrar o elemento autofágico me fez buscar a presença de uma crítica e de uma nova visão do Judaísmo, que arcasse com as perdas sem lamentá-las, mas considerando-as naturais e necessárias para a continuidade desse povo, dessa religião, dessa cultura.
Evidentemente, ao escolher estudar autores judeus, fui obrigada primeiramente a indagar: será que um judeu que se propõe a escrever será um escritor judeu? Essa é uma pergunta que atinge, novamente, o cerne da questão sempre trazida à baila, mas cuja resposta é sempre postergada, por ser sempre polêmica e cruel, porque excludente: o que é ser judeu? E quem define quem é judeu? Há princípios claros de definição ou princípios vagos que fazem parte de um mecanismo de poder?
Esse tipo de questionamento procede, mas me levaria a Foucault, e discutir a questão do poder é exaustivo e fora de meus objetivos. Ao considerar que ser judeu implica em uma das três identidades mencionadas por Scliar, esqueço-me de mencionar a legitimidade primordial, como nos é transmitida na tradição judaica: é judeu quem nasce de ventre judeu. Isso é um mecanismo de controle que determina a legitimidade de ser judeu pela origem. Porém, um escritor pode nascer de ventre judeu, mas sua literatura não ser judaica – mas será que isso realmente é possível? Ou em outras palavras: não há reminiscências?
Embora não possa traçar uma conexão reducionista entre vida e arte, tenho em mente que, como diz o poema Resíduo de Drummond, de tudo resta um pouco. Rubem Fonseca chama de síndrome de Zuckerman (personagem de Philip Roth) a terrível experiência que consiste em o público enxergar nos personagens o seu autor, como se uma obra sempre fosse autobiográfica. Esse terreno é movediço, mas não podemos negar que há, sim, alguma relação, nem que seja de total contraste. Clarice Lispector – outra autora que me trouxe aquele estranho orgulho de ser judia – era de uma família de imigrantes judeus, todavia não deixa traços explícitos judaicos em sua obra. Talvez o único seja o nome de Macabéia de A Hora da Estrela. Porém, o que há no nível do símbolo é sempre passível de pesquisa arqueológica e considerações. O silêncio também é uma presença. Ou um espectro.
Como judia, sempre tento enxergar algo judaico em autores judeus, e isso tanto pode ser um trunfo como uma limitação. Há sempre o risco de se guiar a interpretação para caminhos judaicos apenas. Ao ler O Centauro no Jardim, de Moacyr Scliar, enxerguei a figura do centauro judeu que acaba por operar suas patas de cavalo e se transformar num bípede, para melhor se integrar à sociedade, como um símbolo para a questão da identidade judaica, dúbia, marginal, estrangeira, sempre tendo que escolher entre que traços manter e que traços extinguir para se integrar na sociedade circundante. Porém, o centauro pode ser visto mais amplamente como o próprio sujeito cindido do mundo moderno, que se sente estrangeiro, excluído, sem a reconfortante sensação do pertencimento. Uma judia lendo um autor judeu é um constante repensar a leitura, uma constante vigilância sobre o seu próprio risco de etnocentrismo.
Nessa trajetória de estudo é difícil não se sentir entre dois mundos. Brasil e Judaísmo são colocados nos estudos sobre autores judeus como os dois mundos com os quais os escritores teriam que lidar. Mas Judaísmo e Brasil não são termos de natureza semelhante. O Brasil é um país, enquanto que o Judaísmo é uma religião/cultura, sem terra própria por dois milênios; mesmo a criação do Estado de Israel não reunificou a diáspora, e nem seria capaz, visto que para muitos judeus a questão do solo pátrio como fundador da identidade de povo foi se esmaecendo durante tantos séculos. O Brasil é um território concreto, em que um povo múltiplo se formou ao longo de cinco séculos, enquanto que o Judaísmo é território abstrato, que se desloca e se sobrepõe em muitos solos concretos. Esses dois elementos de peso diferente estão em relação e simbiose para formar o autor judeu da diáspora que escreve em português do Brasil, mesclando sua herança judaica selecionada e sua vivência como brasileiro.
Moacyr Scliar é o autor judeu-brasileiro por excelência, o mais representativo e publicamente conhecido, membro da Academia Brasileira de Letras, com uma extensa e diversificada produção. Ao mesmo tempo em que aparenta ser um narrador tradicional, Scliar se utiliza de elementos surreais e fantásticos com uma grande naturalidade, inserindo elementos e atmosferas inusitados com grande naturalidade. O já mencionado centauro de O Centauro no Jardim é apenas um elemento: no mesmo livro encontramos uma esfinge. Ao mesmo tempo, há um elemento muitas vezes político, de fundo marxista e messiânico, como em O Exército de um homem só, que nos remete ao mesmo tempo à realidade brasileira e ao contexto da Europa Central anterior à Segunda Guerra Mundial, em que uma geração de intelectuais judeus como Walter Benjamin e Georg Lukács desenvolviam um pensamento que misturava, sobre um fundo cultural neo-romântico, uma dimensão messiânica-judaica e outra utópica-libertária, que ia do marxismo ao anarquismo. Uma geração de sonhadores e utópicos, tal qual o capitão Birobidjan do livro de Scliar, que sonha um novo mundo.
O contraponto ideal a Scliar me pareceu Samuel Rawet, um escritor judeu mais à margem e como uma identidade judaica repleta de conflitos. Enquanto Scliar seria o escritor judeu orgulhoso de suas raízes, Rawet, ao longo da vida, desenvolveu uma relação tortuosa com sua identidade judaica, que chegou ao extremo auto-ódio. Ao contrário de Scliar, cuja prosa é sempre fluida, prazerosa, a escrita de Rawet é de difícil dicção, trabalhosa. Ler Rawet exige esforço, mas a tarefa árdua é compensada por sua visão da condição cindida do imigrante, da inadaptabilidade e da incomunicabilidade que podemos e devemos não limitar ao judeu, mas ao homem moderno. No que toca ao Judaísmo, Rawet é um autor fascinante, pois os elementos judaicos presentes vão variando ao longo da obra do escritor, até que a herança judaica passa da autofagia para uma radical destruição total da identidade judaica. Um escritor perturbador.
A esses dois escritores veio somar-se Cíntia Moscovich. Embora não me agrade utilizar o típico argumento do olhar feminino, é evidente que o fato de lidar com uma autora traz uma outra dimensão ao meu estudo. Há um olhar sobre o cotidiano da família judaica e as escolhas que são necessárias para habitar o mundo e herdar autofagicamente o legado ancestral. É um olhar humano, cálido, à primeira vista prosaico, que tira da simplicidade de instantes únicos, íntimos, a grande poesia da construção da identidade, como nos contos “Sheine Meidale”, “O telhado e o violinista”, ou no próprio depoimento da autora em “Bonita como a lua”, em que fala de sua infância, de seus sonhos de ser escritora e em que medida abriu mão de certas expectativas dos pais, imigrantes judeus, para escolher o que herdar. Ser médica ou advogada e casar com um bom rapaz judeu deram lugar ao trabalho como jornalista e escritora e ao casamento com um goi, um não-judeu.
Aproximo-me desses autores, leio-os, releio-os, insisto e encontro caminhos. Autores diferentes que unifico pelo Judaísmo, cujas possibilidades e nuances tento desvendar. Busco o Judaísmo possível, mutante, despido de sua majestade, e ao mesmo tempo confiro a ele cetro e coroa a cada instante. Típicos movimentos paradoxais de quando tentamos estudar um objeto do qual não temos distanciamento necessário. Nesse universo milenar e no meu universo que não chega a três décadas, sensações, desejos, informações e hipóteses movimentam-se e escrevem respostas. Ou mais perguntas. Patrícia Chiganer Lilenbaum é aluna do Doutorado em Literatura Brasileira na PUC-RJ, pesquisa escritores brasileiros cuja literatura expressa uma visão crítica sobre questões judaicas.
Referências
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Postagem: Andre-Moshe Pereira, Presidente Kehillah Or Ahayim