Sunday, December 16, 2007

Albert Camus


PONTO DE VISTA: Albert Camus VEJA, Fevereiro de 1945

Nos dois primeiros anos desta guerra, o franco-argelino Albert Camus dizia ser contra a resistência armada. Mas, em 1941, viu um amigo ser morto na ocupação alemã. Desde então, Camus segue de perto a revolta - e neste texto, escrito em meio à libertação de Paris, fala sobre o triunfo contra o nazismo.

Enquanto as balas da liberdade ainda assobiam através da cidade, os canhões da libertação adentram os portões de Paris entre gritos e flores. Na mais bela e quente das noites de agosto, as eternas estrelas sobre Paris se misturam aos rastros de balas, à fumaça dos incêndios, e aos foguetes coloridos de uma celebração em massa. Esta noite sem paralelos marca o fim de quatro anos de história monstruosa e de uma indescritível luta na qual a França entrou em sintonia com sua vergonha e sua ira.

Aqueles que jamais se desesperaram sobre si mesmos ou sobre seu país encontram sua recompensa sob esse céu. Esta noite vale um mundo inteiro; é a noite da verdade. Verdade sob armas e em ação, verdade sustentada pela força depois de tanto tempo de mãos vazias e sem proteção. Ela está por todos os lados nesta noite, quando as pessoas e os canhões retumbam simultaneamente. É a própria voz do povo e dos canhões; ela é a face exausta dos guerrilheiros de rua, triunfantes com suas cicatrizes e seu suor. Sim, é de fato a noite da verdade, da única verdade que importa, da verdade disposta a lutar e conquistar. ...
"O preço foi alto.
Ele tinha todo o
peso do sangue e a
terrível dureza das
prisões. Mas ele
tinha de ser pago."

Peso do sangue - Quatro anos atrás, os homens se levantaram entre as ruínas e o desespero e calmamente declararam que nada estava perdido. Disseram que precisávamos continuar adiante e que as forças do bem sempre superariam as forças do mal se estivéssemos dispostos a pagar o preço. Eles pagaram o preço. E, certamente, esse preço foi alto; ele tinha todo o peso do sangue e a terrível dureza das prisões. Muitos desses homens estão mortos, enquanto outros vêm vivendo por anos cercados por paredes sem janelas. Esse era o preço que tinha de ser pago. Mas esses mesmos homens, se pudessem, não nos culpariam por essa terrível e maravilhosa alegria que nos eleva e arrebata como uma maré alta.

Porque nossa alegria não quebra a confiança deles. Pelo contrário, ela os justifica e declara que eles estavam certos. Unidos no mesmo sofrimento por quatro anos, ainda estamos juntos na mesma excitação; conquistamos nossa solidariedade. E de repente estamos estupefatos de ver, durante esta noite deslumbrante, que, por quatro anos, nós jamais estivemos sozinhos. Vivemos os anos da fraternidade. ...
"Ninguém é capaz
de viver sempre
entre a violência.
A felicidade e a
afeição ainda terão
seu momento."

A paz prometida - Duros combates ainda estão pela frente. Mas a paz deve retornar a esse planeta despedaçado e aos corações torturados por todas as esperanças e memórias. Ninguém é capaz de viver sempre entre assassinatos e violência. A felicidade e a afeição terão sua hora. Mas essa paz não nos encontrará esquecidos. E, para alguns entre nós, as faces de nossos irmãos desfiguradas por balas e a grande irmandade viril dos últimos anos jamais nos abandonarão. Que os nossos camaradas mortos aproveitem por eles mesmos a paz que é prometida a nós durante essa noite de pintura, pois eles já conquistaram-na. Nossa luta será a deles.

Nada é dado aos homens, e o pouco que eles conquistam é pago com mortes injustas. Mas a grandeza do homem está em outro lugar. Está em sua decisão de ser mais forte que sua condição. E se sua condição é injusta, ele tem apenas uma forma de superar isso, que é ele mesmo ser justo. Nossa verdade nesta noite, que paira sobre nossas cabeças neste céu de agosto, é justamente o que consola os homens. E nossos corações estão em paz, assim como os corações de nossos camaradas mortos estão em paz, porque podemos dizer, enquanto a vitória retorna, sem qualquer espírito de vingança ou de rancor: "Fizemos o que foi necessário".

Albert Camus ,31 anos, é filósofo, jornalista e escritor. Nascido na Argélia, ele fundou o Théâtre du Travail e trabalhou em publicações como Paris-Soir. Por ter tuberculose, foi impedido de se alistar no Exército da França. Em 1943 tornou-se o editor do Combat, o jornal clandestino do grupo de resistência de mesmo nome.