Saturday, December 29, 2007

António Tabucchi: a voz da escrita

Andre-Moshe Pereira

Pres. Comunidade Judia Or Ahayim



Existe um conflito entre a cultura oral e a cultura escrita em Tristano Morre. De António Tabucchi, (AT), P.D. Quixote, Lisboa, 2006. A cultura grega é a origem da palavra oral. A palavra supõe o registo, o depósito da memória, a escrita. A escrita reinventa e reconstrói os acontecimentos como a escrita. O estatuto da voz pode ser maior que o estatuto da escrita. O escritor está ao lado do moribundo e limita-se a ouvir e a reescrever, como o leitor e o seu papel é apenas simbólico. O papel nesse plano é importante como elemento químico dum passado cada vez mais passado.

A voz é biológica e a escrita mineral. Vivendo, respirando, emitindo um som expomos uma forma de vida. A tinta é um produto artificial; graças ao corpo biológico falamos e somos animais que representam a vontade e definem a identidade do que vamos sendo. Como pode num livro o estatuto da voz ser maior que a escrita? Há ouvintes imaginários em cada um de nós, ouvimos e reescrevemos. Somos mais o ouvinte que o falante; invariavelmente o escritor é a voz e o ouvido; ter que ser como revela a Carlos V. Marques o mesmo António Tabucchi “a bofetada e a cara”. Como entender a escrita… dum acto que vem da voz e da fala e não do papel? O importante é que quem escreve cria a personagem; como o nacionalismo cria a Nação; o heroísmo é um heroísmo visceral; um enviado de Mussolini a violar um País (a Grécia): um alemão que mata uma criança e uma velha: instintivamente o italiano seu aliado institucional – derivado do pacto ou aliança – mata o alemão. Faz a traição ao seu país mata o seu aliado: mesmo nas pequeníssimas traições há qualquer coisa que fica a moer-nos por dentro, refere o Autor. Entrará na resistência grega e depois entrará na italiana. Deriva política: a parte emotiva tem uma importância decisional nas nossas escolhas. Não se pode determinar o que é emocional e racional na predeterminação nos nossos actos: a alquimia que nos leva escolher o que estamos a acertar e a errar; cultura, educação e convivência social: a parte racional; Se um miúdo apanha um pontapé de um adulto… o que poderíamos fazer? O impulso ou a razão; a idade é a altura da sagesse: Cícero em De Senectute: aos setenta anos: a idade da sabedoria: Immanuel Kant: diria antes: “meu caro Cícero para que lhe serviu chegar aos oitenta anos, da razão depois de cometer tantos erros?”.

Poderíamos perguntar-nos como funciona a parte social da nossa razão emocional: Norberto Bobbio foi um grande estudioso do legado de Thomas Hobbes. Estuda ele o modelo hobbesiano, estado de natureza conflitual da sociedade civil. Aqui entra pela porta pequena Thomas Hobbes. Na linha do pacifismo, Bobbio utiliza o legado de Hobbes na relação que realiza entre o estado moderno e as condições para a paz perpétua. Norberto Bobbio Entre outros autores sobre os quais também estudou e publicou como Gramsci (Ensaios sobre Gramsci e o conceito de sociedade civil), Locke (Locke e o direito natural), Hegel (Estudos sobre Hegel: direito, sociedade civil e Estado), Kant (Direito e Estado no pensamento de Immanuel Kant) e outros.

Sobre a influência de Hobbes na sua obra, Bobbio comentou em Reflexões de um octogenário: “[...] reconheço. Hobbes foi um dos meus principais autores. Sobre ele me debrucei de tempos em tempos durante toda a minha vida” (Bobbio, 1997, p. 117). Disse ainda que não se havia dado conta de que o Leviatã não era o Estado totalitário, “mas o Estado moderno, o grande Estado territorial moderno, que nascera das cinzas da sociedade medieval; um corpo político capaz de actuar historicamente nas mais diversas formas de governo” e que o “Leviatã é substancialmente o detentor do monopólio da força legítima: legítima porque fundamentada no consenso dos cidadãos”. E prossegue, “Fiquei impressionado sobretudo pela inovação de Hobbes em relação ao método. O discurso de Hobbes já não se fundamentava no princípio da autoridade, histórica ou revelada, [...] mas em argumentos exclusivamente racionais” (ibid., p. 117-118). O alcance de Hobbes foi maior em relação ao método que ao conteúdo. De qualquer forma, também em relação à substância existem ideias hobbesianas que contribuíram para a formação de seu pensamento político, como ele mesmo enumera: o individualismo, o contratualismo e a ideia da paz através da constituição de um poder comum... (Bobbio, Escritos autobiográficos: De senectute e outros escritos autobiográficos. Rio de Janeiro: Campus, 1997, p. 118). O que chamamos de modelo hobbesiano é a concepção de estado de natureza como estado de guerra permanente, “no qual os homens eram todos iguais no poder de infligir-se reciprocamente o maior dos males: a morte” (Bobbio, O problema da guerra e as vias da paz. São Paulo: Unesp, 2003. (Em geral ,Vd. Gustavo O. Vieira, Civitas – Revista de Ciências Sociais, Porto Alegre v. 5. n. 2, jul.-dez. 2005).

O que faz o Autor continuar a voltar? A fidelidade às amizades…O hábito faz parte na vida. Este Portugal que entrou prepotentemente na vida de Tabucchi através da língua. A pátria é também a minha língua refere Tabucchi; ter um País ou dois é um privilégio: a língua é uma coisa muito profunda, um depósito de memórias do nosso imaginário, do nosso vivido. Os ambientes influenciam a escrita. Os livros têm calor, Verão, o calor de Requiem, de Afirma Pereira, meteorologicamente há marcas, essa marca portuguesa, na expressão popular.

No território neutral em Paris que foi escrito o Requiem; Paris a última fronteira, 1964: em trânsito; Fillologia Românica Língua e Literatura Portuguesa: o melhor estudante de português. Esse acaso que dá de seu nome Tabacaria de Fernando Pessoa; a primeira Palavra – Oh Pá! Paz, Rapaz, como Che! Na Argentina… fala primeira desse contacto longínquo, o francês.

A aprendizagem da língua: aprendem-se bem as línguas com o método Berlitz: língua a língua, boca-a-boca. Essa epifania: num comboio ler esse poema e depois deixar-se levar pela intensidade pessoana. Depois de filosofia e desses estudos inúteis (de filosofia) na Sorbonne regressa à Toscana; Pisa e chega à conclusão que era melhor estudar Letras. O primeiro contacto com Portugal: 1965: Portugal intelectual que estava reduzido a intelectuais, escritores e artistas que viviam com certa dificuldade: José Cardoso Pires, Alexandre O’Neill; amizades e cumplicidades: o livro abre uma porta, induz a visitar para se ficar num País são precisas as pessoas. A modernidade que vivemos é a arma de dois gumes e felizmente nos afasta do saudosismo e do ruralismo secreto. Portugal mudou rapidamente, caoticamente, vertiginosamente; este é um país um país democrático esta modernidade excessiva que não arrase a humanidade que devemos continuar a manter. Depois vem a solidão das grandes cidades do mundo e vêm os conflitos e hostilidade: é preciso guardar a humanidade, o humanismo. O liberalismo déchaîné que cria uma sociedade com grandes conflitos tensões e hostilidade. O livro dito ou ditado: O livro Tristano Morre fala é um solilóquio; a narrativa como descrição: a voz terceira: a voz de quem morre: a corrigir as interpretações biográficas. A rasura da própria história. A morfina que este moribundo consome propõe uma intersecção alucinante entre a lucidez de sonhos e delírios. Da vida é muito mais o que não recordamos do que o que recordamos. Qual o sentido da vida?

As notas de cadernos como os de Wittgenstein antigos e preciosíssimos. O livro oral de Tabucchi (António Tabucchi é uma das vozes mais representativas da literatura europeia. Autor de romances, contos, ensaios, reportagens, peças de teatro, os seus livros estão traduzidos nas mais diversas línguas entre as quais se contam o japonês, o finlandês, o chinês, o curdo, o hebraico): a escrita impõe e determina a literatura e literatice. Valentina Parlatto por momentos foi o outro de si. Ele fala, ela escreve. Estava a ler o manuscrito e recodifica o que estava escrito e há uma diferença que a fillologia não detecta e que a exegese futura terá dificuldade em consagrar. O escrito é o outro – esta fase é forte. Mês e meio para uma escritora que surge como uma dádiva que surge pela voz de um deus menor, o autor, AT. A reconstrução da vida é impossível. Um homem que fala incessantemente para outro em nome de outro, para outra. Que método é este? A voz dum moribundo que se conta através dum estilo que inaugura a biologia da escrita. A novidade: construir o livro na cabeça. Decorar o que está na cabeça e sai para o papel. Uma escrita telemática. Em substância dum conto. A canção sefardie . o homem enamorado do ar: as perseguições de nós, outros, dos judeus na Península no início do Século XVI, no Jardim Botânico e no Príncipe Real, algo do seu passado, uma marca muito grande que é Auschwitz: um terraço uma rapariga, que estende a roupa a secar no terraço de cima do prédio e sai daí Samuel, Shmuel, e giram os dois nos braços um do outro como se fossem um e ela começa a cantar a canção que ele conhecia de que ele se lembra…o que testemunhava este acontecimento. Lembra, creio, um quadro de Marc Chagall no rodopio infinito para o alto. As promessas não são promessas, na modernidade; não têm nenhum senso de parentesco ou amizade.