Saturday, October 06, 2007

O do Povo e o dos Sábios

André Moshe Pereira

Presidente Kehillah Or Ahayim

Director Ceimom


Tanto chamei, que um dia respondeste.

Mas não pude entender o que dizias.

M. Torga, Sibila, 16 de Nov. de 1953


A consciência e a vida judaicas e da visão duma história e simbólica portuguesa que analisaremos muito levemente num segundo momento com ajuda de Fernando Pessoa, só podem ser adequadamente entendidas em termos dum padrão dialéctico que contenha propriedades opostas ou contrastantes.

Os lados podem conter propriedades opostas e exemplificam uma polaridade que reside no coração do próprio âmago do judaísmo; Essa dialéctica é bem definida no encontro de dois mundos concêntricos ou de duas disposições opostas mas em dialéctica constante.

A polaridade de ideias e de acontecimentos do mitsvá e do pecado, da kavaná e das acções, da fidelidade e da espontaneidade, da uniformidade e da individualidade, da halachá e da agadá, da lei e da espiritualidade, do amor e do medo, da compreensão e da obediência, da alegria e da disciplina, da pulsão do bem e da pulsão do mal, do tempo e da eternidade, deste mundo e do mundo que virá, da revelação e da reacção, do discernimento e da informação, da empatia e da auto-expressão, da crença e da fé, da palavra e do que está para além da palavra, do mundo e de D.us.

A relação de D.us com o mundo caracteriza-se pela polaridade da justiça e da misericórdia, da providência e do segredo, da promessa da recompensa e da exigência em O servir acima de tudo. A separação de qualquer membro na vida concreta é logicamente impossível e mesmo impraticável. Não devemos depreciar o corpo nem sacrificar o espírito. O corpo é a disciplina a norma, a lei. O espírito é a devoção interior, a espontaneidade, a liberdade. O corpo sem espírito é um cadáver «adiado que procria» como diz o nosso Poeta grande, Fernando Pessoa. O espírito sem corpo é um fantasma. A mitsvá é uma disciplina e uma inspiração, um acto de obediência e uma experiência de alegria, um jugo e uma prerrogativa. A nossa tarefa comum de iehudi é manter a harmonia entre as exigências da halachá e o espírito da agadá. Para a manutenção deste espírito têm de haver equilíbrio destes dois princípios. São centrífugas na sua orientação e expressividade tais dinâmicas. A polaridade é um traço característico de todas as coisas, no amor e no ódio, na passividade e no exercício, no pensamento e na contemplação, na razão e na descrença, no óbvio e no obtuso, no simples e no complexo, na morte e na vida, na abstracção e na concreção, na unidade e na diversidade, no plural e no singular, no universo e no multiverso, no pesado e no leve, na tristeza e na exultação, na espontaneidade e na intencionalidade, na representação e na intuição, etc., a tensão o contraste e a contradição são inerentes à realidade como um todo. Na linguagem do Zohar este mundo é chamado de alma deperuda ou mundo da separação. A discrepância, a contenção a ambiguidade, afligem a vida como um todo e inclusive o estudo de Torah.

E que dizer da alma portuguesa e das suas polaridades? Numa carta ao Conde Hermann von Keyserling de 24 de Abril de 1930, Fernando Pessoa explicita sem desvelar por completo o sentido outro da alma Portuguesa, a sua origem subterrânea depois da batalha de Alcácer Quibir do Rei e Senhor D. Sebastião, atingido pelas aparências da morte: “ esta alma portuguesa , herdeira, por razões e irrazões que não é ainda legítimo explicar, da divindade da alma helénica, fortificou-se na sombra e no abismo. Outrora, descobriu a terra e os mares; criou tudo o que o mundo moderno possui que não é antigo, pois os dois outros elementos do mundo moderno (a substituição da semicultura latina pela cultura helénica, obra do Renascimento italiano, e o individualismo, obra da Reforma e da Revolução inglesa) são elementos obtidos por uma transposição de antigos elementos de antigas religiões e civilizações: não são criados integralmente, como o oceanismo, o universalismo e o imperialismo à distância que foram os resultados conscientemente produzidos do primeiro movimento divino da alma portuguesa, do segundo estado da Ordem secreta que é o fundo hierático da nossa vida. Mas a segunda alma portuguesa só criou todas estas coisas na infância da sua força, na adolescência da sua missão transcendente.” (Fernando Pessoa, Cartas, Edição de Richard Zenith, Lisboa, Círculo de Leitores, 2007, pp. 321-322). Esta visão quinto-imperialista que Richard Zenith concede como referências ao sebastianismo e à “Grande Alma portuguesa» manifestar-se-ia não já como uma atitude material dos descobrimentos mas sim espiritual e “supra-religiosa.” (Ibidem, p.21). Entre a leitura cifrada do nosso passado adolescente e do nosso futuro profético entre o criptograma e a mensagem clara: a mensagem comum parece ser a de que coexiste esta tensão dialéctica dos textos que escrevem a pátria portuguesa para além da história material assente na Ordem ajudando a perceber a coerência interna de teses que se localizam num espaço num tempo e na cabeça d(o)um homem. Como podemos preservar o conhecimento do espiritual e do subterrâneo do Revelado através da História? Já é a Hora? E para quem? Para o Povo ou para os sábios? Que é Portugal? “ Não será ainda a Aventura Definitiva, a conquista prometida do Céu de D-us.” (Ibidem, p.322).