Wednesday, October 31, 2007

Media e cultura

André Moshe Pereira
Pres. Comunidade judaica Or Ahayim, Porto

Numa sociedade como a nossa em que são considerados no espaço e esfera públicas o universo tipográfico, o livro e a imprensa, a sociedade pós-industrial, os media de massa, a pós-televisão e os novos media emergentes, o direito à intimidade consiste na faculdade que tem cada indivíduo de obstar a intromissão de estranhos na sua vida privada e familiar, assim como de impedir-lhes o acesso a informações sobre a privacidade de cada um, e também impedir que sejam divulgadas informações sobre esta área da manifestação existencial do ser humano e no entanto tudo é infinitamente poroso e volúvel com a liberdade que os media e o tempo presente promovem com as novas tecnologias.

Os conceitos de intimidade e vida privada, constitucionalmente consagrados, apresentam grande interligação, porém, diferenciam-se por ser, o primeiro, menos amplo que o segundo, encontrando-se, portanto, no âmbito de incidência deste. Desta forma, o conceito de intimidade refere-se às relações subjectivas e de foro íntimo das pessoas, como as relações familiares e de amizade. Já o conceito de vida privada engloba todos os relacionamentos das pessoas, inclusive os objectivos, como relações de trabalho, estudo, conhecimento, interrelação social e afectiva. Mas mais ainda as tecnologias parecem tomar o lugar do humano e das suas mediações sensíveis e inteligentes.

O poder que os media exercem sobre as pessoas é impressionante e, muitas vezes, devido à arbitrariedade, aleatoriedade e ritmo e grandeza com que se apresenta, causa danos irreparáveis, pois não há um código de ética que defina os limites da sua actuação prática.

Como se não fossem suficientes os ilimitados poderes que a imprensa em particular e os mass-media em geral conferem a si mesmos, existem casos de informações falsas, forjadas, que expressam claramente a manipulação política dos media, que além de exagerar factos, os falseia.

Tome-se o caso dos meios de comunicação de massa na difusão do gosto estético e dos hábitos culturais: de repetição e também de algum gozo melómano que a orquestra tem em representar infinitamente ao nosso exclusivo querer e que as tecnologias trouxeram até ao ouvido do último habitante da Terra ou do longínquo mundo de Baudolino: “a música clássica desempenha um amplo papel nesta nova presença cultural do som. Segundo creio, está a entrar cada vez mais nas vidas, nos hábitos de atenção e resposta de homens e mulheres que outrora se ligariam às letras. Em muitas casas de família, os aparelhos de alta‑fidelida­de e o gira‑disco ocupam o lugar da antiga biblioteca. A alta‑fidelidade e o LP são algo mais do que um progresso técnico. Abriram‑nos e tornaram‑nos facilmente acessível um vasto território musical, de formas e tonalidades perdidas, anteriormente reservadas ao conhecimento dos arqui­vistas. [...] O LP transformou as relações do ouvido e da duração musical. Uma vez que podem ser passadas de um só fôlego, ou com intervalos mínimos, as obras de mais longa duração – uma sinfonia de Mahler – ou sequências ordenadas como as Variações de Goldberg podem hoje ser integralmente ouvidas em casa, e até repetidas ou segmentadas conforme o gosto e a exigência de cada um. Esta relação flexível entre o tempo escrito do trecho musical e o fluxo temporal da vi­da individual do ouvinte pode tornar‑se em simultâneo arbitrária ou esclarecedora. [...] Enquanto os vitorianos publicavam livros de bolso para amantes, grinaldas de prosa e verso que os apaixo­nados liam mutuamente em voz alta ou murmuravam em segredo, nós dispomos de discos de se­dução, destinados a serem ouvidos na altura em que o lume esmorece na lareira. Se Dante escre­vesse hoje o verso que cristaliza a paixão absoluta e a rejeição do mundo, penso que seria qual­quer coisa como: «E nada mais ouviram nesse dia»”. (George Steiner, In Bluebeard’s Castle. Some Notes Towards the Re-definition of Culture, London/Boston, Faber & Faber, pp.84-98).

A complexidade, a totalidade, a resistência que se transforma em índices, como chave aporemática de leitura e reinterpretação da “Geopolítica da Cultura”, que por exemplo Armand Mattelart explora desde os meados do século XIX, ou na explicitação no surgimento de uma sociedade de massas baseada numa sociedade mais alargada de sociedade de consumo de produtos, imagens, narrativas e pós-narrativas, a virtualização da consciência, a educação virtual que contradita a noção vertical de homem gutemberguiano, assim como o aparecimento, instalação, crescimento, amadurecimento, concreção e proliferação de companhias transnacionais e a internacionalização das agências de publicidade, que passam a dominar o termo “comunicação” a nível dos media, empresas e organizações. A. Mattelart coloca constantemente a questão da possibilidade ou da necessidade, de traçar um caminho diverso, múltiplo sobre as lógicas comerciais que tentam pautar e uniformizar o que se deve consumir, numa uniformidade que é medida pelo processualismo de canais que chegam a todo o receptor universal, e na afirmação da sua posição (de Mattelart) de resistência, tenciona traçar linhas de recuperação do passado que ajudem a completar e construir o todo que une os distintos tempos e momentos num paradigma complexo quanto à busca da superação de respostas e causas unidimensionais.

Como estamos longe dessa evocação que George Steiner faz da transcrição e da vida de reflexão e conhecimento, das páginas íntimas que consagram o ímpeto e a voz singular, nossa, única, entre mass-mediatização dos fenómenos-mundo: “E quem de entre nós se dá ao incómodo de transcrever, de registar para satisfação pessoal e para gravar na memória as páginas que mais directamente lhe falaram, que o «leram» de modo mais penetrante? A memória é, evidentemente, o pivot. […] Le Philosophe lisant, tal como os homens cultos que o rodeiam, numa tradição que vem desde a antiguidade clássica até aproximadamente à Primeira Guerra Mundial conhecem textos de cor […]. Sabem de cor partes consideráveis das Sagradas Escrituras, da liturgia, da poesia épica e lírica. […] A competência para citar as Escrituras, para recitar de memória extensos passos de Homero, de Virgílio, Horácio e Ovídio, para declamar no momento uma citação de Shakespeare, Milton ou Pope, produzia o tecido partilhado de ecos, de reconhecimento e reciprocidade intelectuais e emotivos em que se fundamentou a linguagem da política, da lei e das leis britânicas. (George Steiner, No Passion Spent. Essays 1978‑1996,London/Boston, Faber & Faber, 1996, pp.1‑19; trad.port., Lisboa, Relógio d’Água, 2003, pp.15‑32).