Saturday, April 14, 2007

Terceira Classe



Scholem Aleichem

Se você tem de viajar de trem e – especialmente nas viagens longas – quer usufruir dela e aproveitar a experiência, evite a primeira e a segunda classes. A primeira classe, de qualquer maneira, está fora de cogitação, Deus o proteja dela! Naturalmente, não me refiro à viagem em si, que está longe de ser desagradável: a primeira classe é suntuosa, confortável, espaçosa e tem de tudo. Não é disso que falo, mas das pessoas, os passageiros. Que interesse pode ter para um judeu, eu lhe pergunto, viajar sozinho sem ter uma viva alma para conversar? Quando chega lá, você pode ter esquecido até para que serve a voz. Mesmo se der a sorte de chegar perto de algum passageiro, certamente vai ser um desses fazendeiros vulgares com as bochechas roxas como um trombonista, ou uma madame de nariz empinado e emburrada que nem uma sogra, ou então um turista de calça xadrez com os olhos grudados na janela que nem um incêndio o arranca de lá. Quando se viaja com tais tipos é depressão na certa.

Pensa que a segunda classe é algo melhor? Lá você estará cercado por tudo que é tipo de gente, obviamente nada diferentes de você mesmo, com as mesmas paixões humanas. Eles estão secos pra falar com você, na verdade morrem de curiosidade de saber para onde vai, de onde vem, quem é você... mas ficam lá, que nem manequins de alfaiate: o máximo que acontece são olhares. O vagão inteiro fez voto de silêncio. Por exemplo, bem à sua frente está sentado um almofadinha de unhas feitas e bigodinho, a quem você jura conhecer de algum lugar. Realmente, ele tem todos os sinais de ascendência... digamos, mosaica: isto é, o cara também é da sua tribo. E daí? Se você não lhe arranca uma palavra?... Ele parece satisfeito em enrolar o bigodinho, olhar pela janela e assobiar. Se você quer chatear um sujeito desses, melhor dizendo, enterrá-lo tão fundo que nem no dia da Ressurreição ele levanta – e antes providenciando que perto dele esteja sentado um cristão ou então alguma mocinha –, vire-se para ele e pergunte (mas em russo): “Estou enganado? Ou já tive o prazer de encontrá-lo em Berditchev [cidade russa conhecida como muito judaica]?” Acredite, isto é pior do que xingar a mãe dele. Por outro lado, se você estiver na Rússia e encontrar um tipo desses, melhor falar em polonês, mas querendo dizer, por exemplo: “Desculpe, excelência, mas, se não me engano, sou velho amigo do seu pai, de Yermelínetz [as aldeias de Scholem Aleichem levam, ironicamente, nomes de nobres ou aristocratas russos e poloneses da época ─ Yermelin, Kasril ─, mas acrescidos de sufixos diminutivos de evidente intenção pejorativa: Yermelínetz, Kasrílevke]. Ele não era lá empregado do conde Pototzki?” Isto não é, propriamente, um insulto, mas “Yermelínetz” e “empregado do conde Pototzki” significam, indisfarçavelmente: j-u-d-e-u.


Vou lhe contar um episódio que aconteceu comigo no trem postal. Tive de ir na segunda porque ele não tem terceira classe. Na minha frente está um gentleman, que pode ser tanto judeu como goi. Na verdade, parecia mais judeu... ou não? Quem sabe? Bem, era um belo jovem, bem barbeado, esportivamente vestido. Pinta de Don Juan. Por que Don Juan? Porque ele atirava olhares para uma coisinha bonitinha, uma mademoiselle de chapéu e pincenez no narizinho arrebitado. Embora recentes, pareciam velhos amigos. Ela lhe oferecia chocolates e ele a divertia com anedotas, a princípio armênias, depois judaicas. Eles riam às gargalhadas, que eram mais fortes nas anedotas de judeu, que ele contava com um jeito decididamente goyish, sem a menor suspeita de que eu ali pudesse ser judeu e acabasse ofendido. O romance progride: já sentam lado a lado, ele a olha nos olhos e ela brinca com a corrente do relógio no colete dele. De repente, numa estaçãozinha lá, me embarca no trem um judeu suarento, pálido e coxo, já com a mão esticada para o jovem, dizendo, no mais simples e puro ídish: “Oh, como vai? Eu já tinha te reconhecido pela vidraça da janela! Tenho notícias pra você do seu tio Zalman lá de Manestrishtch!” Não preciso dizer que o nosso Don Juan caiu fora naquela mesma estação deixando a coisinha bonitinha lá sentada. Mas não acabou a história. A mademoiselle – que, claro, não era ídish, senão por que teria ele batido em retirada assim tão precipitado? –, ela começou a juntar suas coisas para saltar algumas estações depois, sem me ter dito nada, nem me olhado, como se eu não existisse. Na plataforma da estação em que ela ia saltar está um patriarcal judeu de barba longa, tipo “nosso pai Avraham” e, ao lado, uma judia de peruca e dois gigantescos diamantes nas orelhas: “Riva querida!!!”, e caíram sobre a filha em lágrimas.


Sem comentários. Eu só quis introduzi-lo às pessoas que viajam de segunda classe e persuadi-lo a preferir a terceira: mesmo entre patrícios você pode se sentir um estranho. Na terceira classe você se sente em casa. Na verdade, se o vagão tem exclusivamente judeus, você vai se sentir... um pouco em casa demais. Aqui não é o máximo do luxo: se não usar os cotovelos dificilmente vai arranjar lugar sentado. Além do barulho ensurdecedor, não dá para saber onde acaba você e onde começa o vizinho (o que, aliás, é uma excelente maneira de conhecê-lo). Todo mundo sabe quem você é, de onde vem e o que faz: e você sabe tudo sobre eles. À noite, nada de problemas para adormecer – sempre haverá alguém com quem falar (e, se você não estiver a fim, sempre alguém falará por você). Aliás, para que dormir quando falar é melhor? Eu acho que devo alguns anos da minha vida a isso. Falando no trem, você sempre termina – mesmo com estranhos – fazendo algum negócio, arranjando casamento para alguma filha ou aprendendo algo de útil. Toda a conversa que você ouve sobre médicos, indigestão, dor de dente, nervoso, Karlsbad [luxuosa estação termal para tratamentos médicos] – tudo lero-lero? Pois olhe só: numa viagem, era um grupo de judeus, falávamos de médicos e receitas. Naqueles dias eu estava com problemas de estômago e um judeu de Kamenev me recomendou um remédio, espécie de pó. Disse que o tal pó – que era amarelo – lhe fora receitado por um dentista, não pelo médico, mas foi tiro e queda. O meu judeu me jurou que devia a vida ao tal pó amarelo, e que sem ele... nem queria pensar. E nem era preciso tomar inteiro o envelopinho, só duas ou três pitadas e pronto, me sentiria outro homem – não mais dor de estômago e nem mais esses médicos sanguessugas de dinheiro –, ao diabo com os curandeiros! E disse: “Se quiser, posso lhe dar um pouco do pó agora mesmo; você vai me agradecer pelo resto da vida.” Cheguei em casa e tomei duas ou três pitadas da coisa. Alguns minutos depois, fui atacado por uma dor como nunca antes havia sentido, de subir pelas paredes. Achei que era a hora do último suspiro. Chamaram um médico, depois outro... acabei voltando das portas da morte. Hoje sei que, se você encontrar um judeu de Kamenev no trem, mande ele mesmo tomar o pó amarelo. Cada lição tem seu preço.


Passada a noite, você acorda e... surpresa: deixou em casa os tefilin e o talit. Não tem problema, sem alarme: alguém sempre te empresta tudo que é preciso, você reza e pronto. Quer retribuir, certamente. “Ótimo, vai abrindo aí a mala, deve ter alguma coisa interessante aí, sabe como é? Viagem de trem e boa companhia sempre abrem o apetite, não tem aí qualquer coisa? Ah, claro que serve... vodca, bolo, um ovo cozido, meio salame e um pedaço de peixe! Ótimo. Se tiver também uma laranja ou maçã ou talvez um strudl? Nada disso? Tudo bem, não é vergonha nenhuma...” Felizmente você tem dois dedos de vinho numa garrafa: pois não faltam voluntários para provar, todos profundos conhecedores das boas marcas: “Este é um legítimo Moscatel da Bessarábia.”, “Nada disso, é um Akerman importado.”, “Que Moscatel, que Akerman? Não estão vendo que é um Koveshaner Bordeaux?” Um quarto especialista se aproxima, pega o copo, examina, cheira, pequeno gole e ruidosa deglutição, “Cavalheiros, não acredito que ninguém tenha acertado, mas devo lhes revelar que se trata de – nada menos – um verdadeiro, simples, puro e honesto vinho de kidush [ritual festivo] da melhor safra de Berditchev.” Todos concordam e o vagão inteiro fala mais alto do que sempre, aquecido pelo vinho e pela solidariedade. É hora de saltar, você não conhece a cidade nem seus hotéis. Não é problema: você vai ter tantas indicações de hotel quantos judeus houver no trem: “Você deve ir para o Hotel Frankfurt – é claro, limpo, simpático e barato ─ a melhor pechincha da cidade.” Outro contesta: “Frankfurt? É escuro, sujo, antipático e caro – a maior roubada da cidade! Ele deveria ir para o Hotel New York.” Um terceiro finaliza: “New York? Só se ele estiver com saudades dos percevejos da casa dele...”


Em uma palavra: viaje de terceira, é o conselho de um caixeiro viajante, um seu amigo à disposição. A gut shabes.