Thursday, April 12, 2007

Direito, magia e literatura








Paulo Ferreira da Cunha*




No Direito não há apenas ritual, há magia. É demiúrgico. Metamorfoseia. Tal como a política, mágica por excelência, criadora por vezes a partir do nada, o Direito tira consequências jurídicas de tudo. Kelsen o comparou já a Midas, transformando em ouro tudo em que toca.


Perante o pombo em vôo, o jurista observa: “eis um imóvel por destinação!” Direito, “a mais poderosa escola de imaginação”, dizia Giraudoux. Não é por acaso que o processo penal historicamente se liga muito, no ocidente, aos casos de “bruxaria”. Perante os relatos que temos desses processos, ficamos com a ideia que neles se afrontam não a racionalidade do Estado perante a corrupção de forças dissolventes e obscurantistas, mas antes se assiste ao choque titânico entre duas magias. Aos rituais macabros alegadamente praticados (arrancados em confissões a tratos de polé), poderíamos facilmente contrapor os rituais de martírio oficial. E observa-se, naturalmente, que há tanto mais condenações de bruxas (com confissão) quanto mais frequente é a tortura. Um ritual mágico gera o outro ritual mágico. As confissões encaixam extraordinariamente bem naquilo que os inquisidores desejam que se confesse. Um imaginário tortuoso, fantástico, pervertido. Bem andaram, porém, os juízes portugueses que poucas bruxas condenaram. E no limite as qualificaram de “ilusas”, iludidas: por isso inimputáveis... O processo é ritual e é magia. Com o seu constrangimento, não raro cria culpados. Como aquele moleque moçambicano que, não tendo furtado nenhum relógio, confessara tê-lo feito sob pressão dos patrões, e admoestado pela sua mentira pelo juiz, que o descobrira inocente, só para se livrar da reprimenda e de eventual punição, já se prontificava a confessar de novo o inexistente crime (segundo lemos num fascinante livro de Memórias recente)... Essas peças processuais que designam os participantes pelo nome próprio e narram factos reconstituídos que teriam cometido, estão magicamente a criar realidades, muitas vezes realidades paralelas. “Fulano, pela calada da noite, com premeditação, em associação criminosa com Beltrano e Sicrano, com malvadez, violência, arrombamento e escalamento, depois de se introduzirem em propriedade alheia, e para mais terreno sagrado, apropriam-se indevidamente, e com ganas de perfídia das galinhas do senhor Prior....”A mesma situação é contada de forma diversa noutra clave literária. Porque esta magia, precisamente, é literária: “A, B, e C, bons amigos, sem quaisquer antecedentes criminais, de baixa extração social, todos filhos de casais separados, com problemas de criminalidade, alcoolismo e prostituição, sem qualquer amparo social, numa sociedade egoísta que os marginalizou, em desespero de causa, numa fria noite, depois de haverem passado devoradora fome, viram-se obrigados a subtrair do galinheiro abastado do padre, algumas galinhas para se saciarem e às suas carenciadas famílias”.


A narrativa mais correcta seria uma terceira, que tudo tem a ver com ritual. Diríamos então algo assim: “Numa aldeia perdida do interior, é hábito que os rapazes, em época de afirmação de virilidade, pratiquem rituais de passagem, quais provas cavalheirescas de antanho. Uma delas, tradicional e já consentida (ao menos tolerada com bonomia) pelo santo cura da aldeia, é, numa dada época do ano, fazer-se uma festa de mancebos à roda de fogueira nocturna, com uma ou duas galinhas que vão buscar ao galinheiro da Igreja, cuja cancela já vai sendo normalmente deixada aberta por muitos dos clérigos, ao longo dos anos, para facilitar a vida aos fingidos ladrões”. Possíveis recursos e revisões de sentença são novas aventuras, ou posfácios, novos volumes. Nalguns, como nas obras rocambolescas de Ponson du Terrail, os mortos ressuscitam, ou as honras são reabilitadas. Tudo assim desagua num problema de Direito e Literatura. O processo é uma peça literária a várias mãos. Vai-se desenrolando em vários capítulos, cada um narrado por um diferente interveniente, com potestas e auctoritas diferentes, mas sempre um co-autor. A sentença é o capítulo final do livro. Não se pense que se despromove o Direito comparando-o assim. Abordagens destas encontram-se na obra de grandes juristas, como Dworkin. O errado é só o pouco crédito dado à Literatura numa sociedade barbarizada; não a aproximação do Direito das suas abordagens, dos seus desafios e das suas seduções. Se virmos os processos da ribalta a esta luz, decerto encararemos a crise da Justiça diferentemente.




*Professor universitário


Escreve nesta página semanalmente lusofilias@gmail.com