Thursday, April 12, 2007

The Portuguese Medievo in Times of Free Faith

O Medievo Português em tempos de livre crença: relações entre judeus e cristãos em Portugal antes do monopólio católico iniciado em 1497
Relations between Jews and Christians in Portugal before the Catholic Monopoly Initiated in 1497

Angelo Adriano Faria de Assis
Coordenador do Curso de História/Docente - Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras Nair Fortes Abu-Merhy (Além Paraíba - MG)


Resumo
Em dezembro de 1496, o monarca português D. Manuel I (1495-1521) decretou a expulsão dos judeus do reino num prazo de dez meses – decreto este que seria transformado, em 1497, em conversão forçada ao catolicismo. Iniciava-se, assim, o monopólio do catolicismo no mundo português, pondo fim ao período de livre crença que caracterizou Portugal durante o Medievo. Este artigo busca analisar o "Tempo dos Judeus" em Portugal, num período que abrange desde os primórdios da presença judaica na Península Ibérica - épocas do imperador Flávio Vespasiano -, até a expulsão de Espanha e Portugal, em fins do século XV – período que merece nossa maior ênfase -, dando destaque às suas relações com os cristãos, as contribuições dos judeus para a sociedade portuguesa, as causas da proibição da liberdade religiosa e as conseqüentes mudanças para os judeus - transformados em cristãos-novos - e para o reino.
Abstract
In december of 1496, the king of Portugal D. Manuel I (1495-1521) ordered the expulsion of jews from the kingdom in a period of ten months –decree that would be transformed, in 1497, in forced convertion to the catholicism. It was the beginning of the catholics’ monopoly in the portuguese world, finishing the time of free faith that was a characteristic of Portugal during the Medieval age. This article should make an analysis about the "Jews’ time" in Portugal, in a period that includes since the beginning of the jewish presence in the Iberian Peninsula – during the Flavio Vespasiano’s governement – until the expulsion from Spain and Portugal, in the end of the XV century – moment that deserves more attention -, giving importance to the relations between jews and christians, the contributions of jews to the portuguese society, the causes of the proihibition of free faith and the general changes to jews – converted in new-christians – and to the kingdom.
Palavras-chave: Judeus, Medievo Português, Liberdade de Crença.
Key-words: Jews, Medieval times in Portugal, Liberty of Faith.

O Tempo dos Judeus em Portugal
A presença hebraica na Península Ibérica encontra seus primórdios na Antigüidade. Indícios mostram ser de origem mais antiga do que a ocupação daquele espaço por mouros, godos e romanos. Divergem, contudo, os historiadores, quanto à chegada dos primeiros judeus na região. Atestam alguns pesquisadores, autores de estudos clássicos sobre o tema (AZEVEDO, 1989; KAYSERLING, 1971; NOVINSKY, 1972; LIPINER, 1982), que os judeus lá teriam chegado em variadas épocas e intensidades, deslocando-se para aquela região por razões as mais diversas: uma leva, como comerciantes, à época de Salomão (1015-977 a. C.); outra, como fugitivos, trazidos da Babilônia, em conseqüência da destruição do Primeiro Templo durante o reinado de Nabucodonosor (597 a. C.) (IANCHEL, 1981); grupos menores, ou familiares, esporadicamente, também teriam seguido a mesma rota, vindos de diferentes partes em direção à península, imbuídos em recomeçar a vida naquele local. Durante a dominação romana na Palestina, sob as intervenções de Pompeu e Tito Lívio, e a destruição do Templo, muitos judeus optaram por emigrarem para a região do Ocidente Mediterrâneo. Para Maria Pedrero-Sánchez, "a projetada viagem de Paulo de Tarso à Hispânia (Rom. 15,24) permite supor com absoluta certeza que existiam assentamentos judeus na Península Ibérica no século I d. C.", senão antes, "já que a ação do apóstolo se iniciava junto às comunidades judias". Por esta época, os judeus lá estariam em maior número, participando, com mais densidade, do processo de mescla social, espalhados em numerosas comunidades nas mais longínquas e diversas regiões do espaço peninsular - espaço este que os judeus denominavam Sepharad. Para a Ibéria, data o mais antigo documento escrito conhecido sobre a presença dos judeus do século III da Era Cristã - uma lápide, adornada com caracteres hebraicos, encontrada na cidade espanhola de Adra -, sendo do século VI o mais longínquo deste tipo de vestígio conhecido em território lusitano.
Se, por um lado, a carência de maiores evidências e informações sobre os períodos iniciais da presença hebraica - apesar da reconhecida riqueza e brilhantismo da atuação judaica nestas remotas épocas -, tornam questionáveis a exatidão temporal de alguns acontecimentos, a estruturação e importância social que cada comunidade adquiriu, ou mesmo os números efetivos que demonstram a real intensidade das ocupações acima citadas, inquestionável é que, muito antes de qualquer elucubração a respeito do surgimento dos Estados Nacionais que hoje formam o braço peninsular mais ocidental da Europa - antecipando-se em séculos à invasão moura a partir do ano 711 que manteve o controle de boa parte da região entre os Pirineus e o Atlântico por aproximados oitocentos anos -, os judeus já conheciam, freqüentavam e habitavam este espaço há séculos. A penetração judaica na península era constantemente intensificada através da interação com as populações lá existentes. Aliás, durante a Reconquista cristã da Península, oficialmente completada no segundo dia de janeiro de 1492, com a entrada triunfal dos Reis Católicos em Granada, alguns judeus optariam mesmo por participar ativamente, ao lado dos cristãos, do combate aos infiéis mouros, lutando contra muitos de seus próprios irmãos de crença, posto que, à primeira vista, os mouros tinham e contavam com os hebreus como partidários. Apesar de estabelecidos e vinculados a raízes ibéricas criadas e renovadas constantemente na longuíssima duração, o povo hebreu seria seguidamente expulso em curto intervalo de tempo, já no opúsculo do século XV, dos reinos de Espanha e Portugal, respectivamente.


O nascimento político do reino português em fins do século XI sob a espada abençoada por visões divinas e comandada por Afonso Henriques (HERMANN, 1988), dá-se num momento em que os filhos de Abrahão já se encontram, há tempos, sedimentados em algumas localidades de grande povoamento e importância, como Santarém, Coimbra e Lisboa. É a Santarém - localizada a Norte de Lisboa, cidade que nasceu às margens do Tejo em seu sinuoso percurso em direção às terras de Espanha - que a história conhecida reservou a marca de possuir a mais antiga das sinagogas do reino, já em pleno funcionamento antes mesmo da conquista desta cidade aos mouros, em 1140 - sinal da organização e expressividade da comunidade judaica ali residente. Nas localidades conquistadas para o novo reino em formação, regulamentava-se desde cedo, via legislações monárquicas, os negócios civis de cristãos, mouros e judeus, beneficiando ora mais ora menos cada um dos grupos, de acordo com o caso, as contingências e os interesses envolvidos.

Em Portugal, o estatuto dos judeus mostrava-se similar aos de outras áreas de maioria cristã. Era regrado e definido pelo direito canônico e romano, ao que se somavam as ordenações particulares do reino, a legislar sobre as especificidades vivenciadas pelos hebreus da região. Segundo nos lembra António Carlos Carvalho,
"Não é então possível falar dos costumes dos judeus em geral, sem entrar num grande detalhe e em distinções particulares. O judeu é um camaleão que toma por toda a parte as cores dos diferentes climas que habita, dos diferentes povos que freqüenta, e das diferentes formas de governo sob as quais vive" (CARVALHO, 1999: p. 22).
As particularidades do judaísmo em Portugal ocorriam não apenas devido às condições específicas surgidas no convívio cotidiano, como as adaptações necessárias à sociedade local, na qual estavam agora inseridos, mas igualmente à necessidade de obediência ao códice de leis daquele reino e suas respectivas reelaborações ou práticas variantes de acordo com os anseios do monarca em questão. Nas terras portuguesas, onde o clima não lhes era, em princípio, hostil, a adaptação dos judeus às exigências do Estado não seria mais traumatizante do que em outras partes do mundo cristão. Os próprios reinados iniciais apontam para uma série considerável de atitudes de congraçamento entre judeus e cristãos no cotidiano, além de toda uma grei de leis relativas aos hebreus, não raro definindo vantagens e concessões especiais feitas em situações variadas, como, por exemplo, a isenção de determinadas taxas que incidiam sobre a maioria cristã no reino. Desde o início de sua estruturação política como região independente, já havia uma atenção especial do Estado com o grupo judeu, preocupado com as vantagens que a presença deste povo traria para a estruturação sócio-econômica portuguesa. D. Afonso Henriques (1128-1185) e um seu sucessor, D. Sancho (1188-1211), cedo diagnosticariam a importância da participação hebraica no auxílio à ocupação, povoamento e controle do território peninsular conquistado. Eram os judeus utilizados em ofícios que exigiam um maior conhecimento técnico e preparação acadêmica, como a medicina, em boa parte exercida por judeus ou utilizando técnicas trazidas e desenvolvidas por este grupo. Também formavam no comércio, onde dominavam espaço considerável e que, se não exigia maiores predicados intelectuais, capitaneava somas consideráveis para a economia local. Representavam uma elite econômica e cultural, visto a própria sedimentação do judaísmo em origem letrada - embora a generalização seja impensável: judeus pobres ou iletrados não eram raros, nem poucos. Monarcas posteriores, gradativamente, ampliariam esta percepção sobre a importância mosaica, conscientes do peso e utilidade da atuação judaica nos projetos de expansão no ultramar.
No Portugal em formação, a princípio, os judeus viviam, sem maiores distinções, entre os cristãos, a dividirem o mesmo espaço, sem que houvesse uma preocupação maior por parte dos monarcas em realizar uma separação geográfica efetiva entre os seguidores dos dois credos. Poucas eram as cidades onde possuíam suas residências em bairros separados. Embora alguns monarcas, a exemplo de D. Diniz (1279-1325), ensaiassem implementar a segregação espacial dos judeus em bairros próprios, é só a partir do reinado de D. Pedro I (1357-1367), nas Cortes de Elvas, no ano de 1361, que a obrigatoriedade de recolhimento dos judeus a bairros especiais, separados dos locais onde habitavam cristãos, é definitivamente posta em prática, apesar da inviabilidade de real cumprimento desta lei na sua totalidade. Neste sentido, espalham-se pelo país as aljamas (LIPINER, 1999: pp. 28 e 149-150) - também nomeadas judiarias ou comunas - bairros fechados criados para os judeus em sítios onde o número de seguidores da fé de Israel ultrapassasse dez pessoas. Aljama, define Lipiner, é termo que se refere ao "bairro próprio dos mouros em terras portuguesas. Este nome, que designava muito primitivamente" - nos tempos iniciais da monarquia portuguesa - "as mourarias ou ajuntamentos de mouros, passou depois a designar as judiarias, bairros de judeus onde, antes da expulsão de 1497, os judeus portugueses viviam segundo a sua lei, mediante pagamento de tributos específicos. Destes tributos eram beneficiários pessoas particulares, em recompensa de seus serviços". As aljamas tinham como objetivo responder à "preocupação então dominante no governo de restringir ao máximo as relações entre os judeus, de ‘crença nefasta’, e a população cristã".


Ademais, cabe lembrar que o conceito de comuna judaica - aqui entendido como "as corporações administrativas dos moradores judeus, organizadas nos lugares onde havia maior número deles, e regidas por direito próprio" (LIPINER, 1999: p. 63) - deve ser apartado da idéia de judiaria ou bairro reservado aos judeus. Na maioria dos casos, as comunas eram formadas por uma única judiaria destinada a reunir os habitantes que comungavam da antiga fé. Porém, em cidades maiores, como Porto ou Lisboa, onde a população judaica era composta por um número significativamente mais expressivo de indivíduos, as comunas podiam ser subdivididas em várias judiarias. Nesta cidade à beira do Tejo, por exemplo, há informações sobre quatro judiarias a formar a comuna - embora não fossem todas contemporâneas -, a saber: a Judiaria Grande ou Velha, possivelmente a mais antiga, de que se tem notícia desde o reinado de D. Afonso III, localizada na região da Baixa; a Judiaria das Taracenas, também conhecida como Pequena ou Nova, que se limitava à rua da Judaria, de que se tem notícia desde 1315, e que foi mandada derrubar por D. Fernando em 1370, para a construção de casas na região; a Judiaria da Pedreira, localizada nas proximidades do atual Largo do Carmo, extinta por D. Diniz em 1317; a Judiaria de Alfama, talvez criada durante o reinado de D. Pedro I, ou de D. Fernando, para abrigar os judeus retirados de outras áreas de judiarias destruídas. Já na cidade do Porto, a comuna judaica dividir-se-ia entre judiarias dentro (burgo velho, arredores da Rua Escura e Zona da Munhata) e fora da cidade (Gaia e Monchique). Também há notícias sobre judiarias em outras importantes regiões do reino: Em Coimbra, localizava-se na rua mais tarde conhecida como Corpo de Deus, e datava da época de Afonso Henriques. Em Tavira, estendia-se pelo Largo do Juremim. Sobre a judiaria de Évora, especula-se que fora criada à época de D. Dinis, existindo referências documentais que remetem ao ano de 1341: localizava-se a ocidente da cidade, delimitada "pelas portas de Alconchel e do Raimundo". A judiaria de Trancoso reduzia-se a uma única rua. Na Guarda, próximo à fronteira com a Espanha, encontrava-se na freguesia de São Vicente e arredores. Em Beja, a judiaria situava-se nas proximidades do Castelo, "para os lados da porta de Avis". Por todo o território luso, enfim, espalhavam-se as comunas reservadas aos judeus, sinal evidente da expressão e consistência da comunidade judaica que habitava em Portugal antes da fatídica implantação das leis de monopólio católico no apagar do século XV. Segundo mapa referente ao período de 1279-1383, havia ainda comunas judaicas nas seguintes regiões portuguesas: Bragança, Rio Livre, Chaves, Guimarães, Mogadouro, Castelo Rodrigo, Viseu, Sabugal, Monforte, Leiria, Torres Novas, Portalegre, Atouguia, Santarém, Elvas, Estremoz, Olivença, Setúbal, Santiago de Cacem, Serpa, Silves, Loulé e Faro (FERRO TAVARES, 2000: pp. 24-27).

A legislação visando o controle sobre os judeus receberia também atenção especial, e a ligação entre a comunidade judaica e a Coroa seria feita através de seu principal representante religioso no reino, o rabino-mor, içado à condição de grande responsável pelo cumprimento das leis relativas aos judeus e julgamento e aplicação das penas devidas aos infratores. Durante o reinado de D. Afonso III (1248-1279), o sistema de rabinato seria regulamentado, com leis próprias e adaptadas à realidade e leis portuguesas. Em documento oficial de 1278, já se encontra referência ao "Arrabi Moor dos judeus". O cargo de rabino-mor era subordinado à Coroa, conferindo ao seu signatário distinção e poder sobre os demais judeus, comandando as questões judiciais envolvendo seus pares, a desempenhar a correição, ou seja, "o desempenho da intendência e da punição", referendando suas medidas com selo particular que, além do escudo a representar o reino, trazia como complemento a inscrição: "Scello do Arraby Moor de Portugal" (KAYSERLING, 1971: pp. 10-11), sinal evidente da sustentação que tinha da Coroa para atuar em suas funções, coibindo com o aval real qualquer descontentamento ou tentativa de insubordinação. O cargo máximo do rabinato judaico no país era exercido por um homem de destaque entre seus pares, com grande influência na Corte e que gozasse da total confiança do monarca, escolhido por este, geralmente, dentre aqueles mais ricos e cultos (FERRO TAVARES, 2000: p. 30). O arrabi-mor era nomeado para o cargo como recompensa pelos bons serviços prestados à Coroa, e tratava diretamente com o monarca dos assuntos de sua alçada.
Apesar de possuírem certos direitos e liberdades, estes variavam de acordo com a política empregada por cada um dos ocupantes do trono ao longo dos tempos. Em relação direta com estas variações de natureza política, os judeus, em ritmo crescente, pagariam preço consideravelmente distorcido pela manutenção de sua participação social, mormente através de impostos específicos - a compensar, por um lado, certas dispensações recebidas de taxações eminentemente cristãs -, e seriam limitados em suas ações por uma legislação que os impedia de determinados direitos oferecidos aos cristãos. Viviam, como define Kayserling, numa espécie de "Estado dentro do Estado", com "justiça, policiamento, administração e bens (...) administrados e supervisionados por autoridades próprias", com jurisdição particular reconhecida pela Monarquia (KAYSERLING, 1971: p. 9). Lipiner, no mesmo tom, o classifica de "um pequeno reino à sombra de outro maior", apontando as respectivas correlações entre o reino português e seu "sub-reino" judeu:
"uma verdadeira cópia, em reduzidas dimensões, do regime jurídico geral vigente no país: Aos concelhos do território português correspondiam as comunas dos judeus; ao corregedor da Corte o arrabi-mor; aos corregedores os ouvidores, imediatamente inferiores ao arrabi-mor; aos juízes ordinários os arrabis das comunas que, como aqueles, eram eleitos anualmente" (LIPINER, 1982: p. 47).


Embora tivessem determinados direitos respeitados por sua condição judaica, o custo das vantagens concedidas era definido - não se deve perder de vista - pelas leis de uma monarquia erguida e fundamentada no cristianismo, a que estavam irremediavelmente submetidos. O Direito judaico sofria uma série de limitações práticas, posto sua situação de subordinação às leis vigentes do reino que, em última instância, serviam de parâmetro e palavra final aos interesses em julgamento. As leis judaicas, embora de certa forma reconhecidas pelo Direito português, não eram independentes da vontade maioral deste, possuindo liberdade de ação apenas até certo ponto.

O próprio sistema de comunas e judiarias demonstra os limites impostos no mundo luso ao "ser judeu". Segundo Maria Ferro Tavares,
É o monarca quem lhes concede, através de uma carta de privilégios, autorização para a criação da comuna. Nela vão escritos todos os usos e costumes, foros e privilégios que, infelizmente, se desconhecem, exceptuando a faculdade que o povo judeu possui de construir os seus templos, de praticar livremente a sua religião, de reunir em assembléias comunais e gerais, de eleger magistrados próprios, de lançar tributos e de se reger pelo direito mosaico" (FERRO TAVARES, 2000: p. 19).
Sobre os bairros judeus recairiam as cobranças de três qualidades de impostos: "a sisa judenga, que devia ser uma capitação; o genesim" - corruptela do primeiro dos cinco livros sagrados dos judeus, a Gênese e, em extensão, nome dado ao imposto que garantia o direito de estudo dos livros sagrados dos judeus -, "para poderem ter nas sinagogas a sua aula de Escritura; e o denominado serviço novo, instituído por D. Manuel" (1495-1521) (AZEVEDO, 1989: p. 44), com que o rei "fazia com freqüência doação aos cavaleiros da sua casa ou a outras pessoas a quem pretendia fazer graça e mercê" (LIPINER, 1999: pp. 235-236). Nos bairros, os judeus eram constantemente vigiados, "sob chave e guarda de el-rei", por sentinelas, a acompanhar e limitar a circulação de pessoas. Seus moradores só possuíam autorização para sair das aljamas e circular livremente fora do bairro no espaço de tempo entre o nascer do sol e o anoitecer, quando o horário do regresso - salvo exceções autorizadas, como problemas de saúde, chamados urgentes, ou ofícios determinados que exigissem deslocamentos à tout à l’heure - era anunciado pelo tanger do sino de oração - que marcava a hora dos cristãos rezarem por três vezes a Ave Maria -, sob o risco de graves penas aos que descumprissem tal ordem.


Ainda durante o Tempo dos Judeus, em 1447, as Ordenações Afonsinas - último códice de leis monárquicas sob o regime de liberdade religiosa - regulavam as regras de circulação dos judeus em alguns de seus itens, como o que trata "das penas que haverão os judeus, se forem achados fora da judaria depois do sino da oração". Tempos antes, em Évora, por decisão do conselho local no ano de 1380, já se definia o procedimento com os possíveis infratores: "se, por ventura", explica Maria Ferro Tavares, "tal não acontecer, todo aquele que for encontrado fora do seu bairro, será preso e conduzido perante o juiz, excepto o judeu ou o mouro físico ou boticário, ou de outro mester que tenha sido chamado por algum cristão" (FERRO TAVARES, 2000: p. 76). Na vigência do reinado de D. João I (1383-1433), inaugurador da Dinastia de Avis, pedidos seriam feitos pelas comunas de judeus para que fossem revogadas ou ao menos atenuadas as penas para os que não cumpriam o horário de recolhimento anunciado pelo sino da oração, devido à constante necessidade gerada por seus ofícios, que os obrigava a distanciarem-se da comuna sem tempo suficiente para o retorno no horário estipulado. O monarca, entendendo as dificuldades dos requerentes, retificaria a lei, determinando, inicialmente, que qualquer judeu a partir dos quinze anos de idade encontrado fora da judaria após o tocar dos sinos pagaria cinco mil libras na primeira vez que fosse pego, e dez mil, em caso de reincidência, ficando arrestado até o pagamento da multa, em ambas as situações. Uma terceira falta o levaria ao açoite público, sendo depois solto, sem que precisasse pagar nenhuma quantia. Revia ainda determinadas situações, isentando os judeus do cumprimento do horário em alguns casos, a saber ((LIPINER, 1982: pp. 51-52):
caso anoitecesse, estando o judeu voltando de um lugar de fora da vila, poderia vir e entrar na judiaria;
caso viesse de lugar distante e encontrasse a judiaria fechada quando lá chegasse, tinha permissão para pernoitar na vila, em estalagem ou em outra pousada onde dormissem outros homens, inclusive cristãos;
caso chegasse à noite de viagem pelo mar, era-lhe permitido dirigir-se diretamente à judiaria ou pernoitar em lugar de cristãos;
caso tivesse quinta ou lugar fora da cidade onde não houver judaria, e fosse à noite buscar seus trabalhadores "que o houverem de ajudar a adubar seus bens", poderia pernoitar em suas casas, desde que lá não houvessem mulheres cristãs desacompanhadas dos maridos ou de outros homens cristãos;
caso surpreendido pelo toque do sino de oração estando em vila ou cidade, fora da judiaria, tinha permissão para lá dirigir-se, ou, onde não a houvesse, procurar a estalagem mais próxima, não devendo sofrer qualquer tipo de punição, mesmo em caso de serem já findas as orações;
caso fosse chamado por alguma pessoa a ir à casa deste, "ou lhe for grande necessidade ir lá por cousa que ao cristão ou ao judeu seja mister", ou sendo médico, cirurgião ou outro ofício específico, chamado para alguma emergência durante a noite, "que possa lá ir", levando a companhia de um cristão como fiador e testemunha de seus atos, e uma candeia acesa, tanto na ida quanto na volta;
caso estivesse a realizar viagem, precisando cruzar vilas ou lugares que fizessem parte do caminho por ele traçado;
caso realizasse serviços oficiais, como rendeiros das sisas d’El-Rey - ou seja: arrematantes e cobradores das rendas reais -, "que possam andar e guardar e arrecadar suas rendas de noite", desde que levando sempre a companhia de um cristão.
Por outro lado, algumas comunas eram ainda beneficiadas com concessões especiais feitas por alguns monarcas, presumivelmente com o intuito de angariar o apoio da comuna para determinadas causas ou ainda como espécie de pagamento por algum tipo de favor prestado (ou a prestar) pelo grupo à Coroa. Assim, algumas comunas poderiam ficar dispensadas, por mercê, da obrigação de prestarem serviço militar ao reino, do pagamento de certas taxas; do não-constrangimento dos judeus à realização de alguns trabalhos considerados aviltantes pela comunidade; da não-utilização de símbolos ou divisas identificadores nas vestimentas, entre outros tipos possíveis de privilégio. Malgrado as interdições que cerceavam seus habitantes ou os benefícios vez por outra recebidos, devemos entender as comunidades judaicas como "um corpo vivo, administrativa e religiosamente independente, directamente ligado ao rei" (FERRO TAVARES, 2000: p. 49), a garantir aos judeus não apenas direitos sociais e a manutenção de suas estruturas tradicionais - mesmo que de forma limitada -, mas a sobrevivência enquanto grupo religioso independente dentro de um reino cristão.
Apesar das proibições que cerceavam aos judeus algumas de suas liberdades individuais, o fato é que, na prática, as necessidades mais básicas da sociedade portuguesa faziam com que fossem permitidas muitas exceções às limitações impostas, acabando por invalidar uma grande parcela destas interdições. O que ratifica, por conseguinte, o grau de penetração judaica na sociedade portuguesa e a dependência desta em relação aos judeus, que ocupavam e colaboravam em todos os espaços fundamentais - muitos judeus atuavam como mão-de-obra especializada em funções de enorme importância, como a medicina ou a arrecadação dos impostos devidos à coroa. Eram tantos e tão fundamentais os judeus para Portugal que se fazia praticamente impossível - e prejudicial - proibi-los de circular livremente. Daí as aberturas permitidas dentro da política de confinamento às judiarias. A importância do grupo judeu gerava, desta forma, a falta de um interesse mais fremente por parte de alguns monarcas portugueses em fazer cumprir efetivamente as leis proibitivas em sua totalidade, fosse permitindo um certo relaxamento no cumprimento das medidas coercitivas contra os judeus, ou ainda, conforme enumeradas anteriormente, através das isenções permitidas dentro da própria lei.
Deve-se, ainda, dissociar o significado de aljamas ou judiarias - bairros onde habitavam os judeus portugueses segundo suas leis e mediante o pagamento de determinados tributos, que se manteve vigente no reino antes de 1497 - da idéia de gueto, principalmente do sentido que ganhou o termo durante o regime nazista em certas regiões da Europa na primeira metade do século XX. Os guetos difundiram-se na Europa desde a Idade Média, e correspondiam, inicialmente, a um espaço urbano específico, destinado aos judeus - sem que fossem, todavia, hermeticamente fechados ou proibissem a livre circulação de judeus e não-judeus. O gueto era uma área de convivência da comunidade judaica que usava o local para proteção conjunta de todo o grupo contra as hostilidades da maioria não-judaica. Em algumas situações, contudo, os judeus conviveriam com a obrigatoriedade do confinamento em guetos. Em Roma, por exemplo, foram encerrados, em 1556, sob as ordens do Papa Pio IV, ficando proibidos, até fins do século XIX, de habitarem além dos limites do gueto. A separação do grupo judeu promovida pela política de guetos atendia aos interesses da Igreja, que procurava proteger os cristãos "do contato com a heresia judaica e dos supostos malefícios do Libelo de sangue. Os muros e os portões do gueto, que eram fechados à noite, não só proviam segurança, ao manter do lado de fora as agressivas turbas cristãs; eles também trancavam os judeus do lado de dentro". Malgrado as imposições de enclausuramento, uma das vantagens da vida em gueto consistiu em "estimular o autogoverno entre os judeus, e ajudou a evitar a assimilação", facilitando a transmissão e renovação dos costumes dos ancestrais às novas gerações e a prática conjunta dos ritos e cerimônias pela comunidade. O anti-semitismo ganharia novas cores no último quartel do século XIX europeu em países como Rússia, Áustria, Alemanha e França. Durante o Hashoá - holocausto judeu promovido pelos nazistas nas décadas de 1930-40 -, os guetos seriam usados como espaço privilegiado para a realização da política anti-semita - judenrein - adotada por Hitler, iniciada com medidas legislativas e agitações públicas e que, no extremo, levaria ao extermínio em massa: "os judeus eram arrebanhados aos guetos, em sua rota para o extermínio nos campos de concentração" (UNTERMAN,1992: p. 110).


Em contrapartida - e talvez já sinal inicial da brusca campanha de conversão cristã que seria mais tarde perpetrada em Portugal -, havia desde o início do reino uma política estatal de incentivo constante à adoção do cristianismo. "Em certos lugares", aponta Lúcio de Azevedo, "eram obrigados a assistir às prédicas, que lhes iam fazer os eclesiásticos, umas vezes no adro da igreja, outras vezes mesmo na sinagoga" (AZEVEDO, 1989: p. 54). Tentava-se os possíveis adeptos do catolicismo através do oferecimento de vantagens explícitas aos judeus que, de moto próprio, optassem pela mudança religiosa, como a garantia de não serem deserdados, e o direito de adiantamento da parte que lhes cabia da herança familiar ainda em vida dos pais. Para fazerem valer sua opção e terem direito às vantagens legais que a mudança de religião lhes oferecia, os conversos de primeira hora ficavam obrigados a deixar de imediato a casa paterna, independente de terem ou não alcançado a maioridade. Durante o reinado de D. João, todo judeu convertido ao cristianismo deveria conceder à mulher que não aceitasse converter-se à nova religião documento de divórcio; procurando incentivar os maridos no processo de conversão das mulheres, o decreto seria alterado por D. Afonso V (1438-1481), certamente ciente do sentido matrilinear na divulgação hereditária do judaísmo em família. Obrigava então o marido convertido a viver por prazo de um ano com a esposa na tentativa de arrebanha-la ao cristianismo: findo o prazo e mantido o insucesso, via-se obrigado a concede-la o divórcio (FERREIRA DA SILVA, 1999). Estas medidas, sem sombra de dúvida, foram fator responsável por gerar dolorosos conflitos e rupturas familiares entre os que se mantinham judeus no clã e os membros desertores da Antiga Fé. Os convertidos, cabe ressaltar, eram legalmente impedidos de retornarem à prática do judaísmo, delito este punido com a pena de morte.
A gente hebraica era igualmente utilizada pelos monarcas e seus representantes em funções consideradas depreciativas e degradantes pelos cristãos, como ofícios manuais, determinados cargos públicos e arrecadação de impostos e rendas públicas - atividade da qual os cristãos procuravam evitar a todo custo -, mas ficavam proibidos de ocupar alguns cargos oficiais, reservados unicamente aos cristãos. Também ficariam interditados de possuírem criados cristãos - lei esta que não existia no sentido oposto. As onzenas ou empréstimos usurários, prática associada aos judeus, também eram regidos por leis monárquicas. No reinado de Afonso III (1248-1279), ficou especificado que os juros aplicados aos empréstimos feitos não poderiam ultrapassar o valor total do capital financiado - o que atingia, em sua grande maioria, senão totalidade, aos judeus, principal grupo envolvido com tal negócio. Seriam, porém, beneficiados com a garantia real dos investimentos da comunidade hebréia contra a má fé de alguns cristãos, objetivando tirar privilégios de seu status legal. Em Santarém, por exemplo, decretou o ressarcimento total de dívidas contraídas a judeus, obrigando os devedores a restituir-lhes o valor devido ou a assumir as dívidas contraídas.


No que diz respeito às querelas judiciais, a situação dos judeus mostrava-se ambígua ou, ao menos, parcial. O reinado de D. João I, em inícios do século XV, utilizando-se de jurisdição pré-existente, regularia os procedimentos a serem adotados em cada caso. Nas disputas envolvendo apenas judeus, ensina Lipiner, "era garantida a exclusividade da aplicação do Direito escrito ou tradicional judaico, ainda que em certas fases do julgamento - na instância superior, por exemplo - os juízes fossem cristãos". Já para o governo de D. Afonso V, as apelações e agravos deveriam ficar reservados à Justiça do reino, "a qual, no entanto, devia julgar esses recursos mediante a observância do Direito escrito e oral dos judeus"; tirava-se ainda da esfera de jurisdição judaica "as causas fiscais referentes a dízimas, portagens, sisas e quaisquer outros direitos da coroa", subordinando os judeus, nestes casos, à jurisdição dos tribunais portugueses. O mesmo monarca, definiria, para contendas envolvendo judeus e cristãos, que as causas fossem julgadas exclusivamente por "juízes cristãos especialmente nomeados para este fim, denominados geralmente juízes dos judeus". Vários seriam, segundo o autor, os juízes nomeados com esta função especial, principalmente durante o reinado de Afonso V. Exceção feita aos locais "onde não funcionasse essa Justiça especial", e unicamente nas causas cíveis, quando o judeu fosse interpelado pelo cristão diante de seu arrabi, e vice-versa, valeria "o velho princípio jurídico de que o autor devia seguir o foro do réu". Nos demais casos, "assim no crime como nas questões fiscais", competia ao juiz ordinário da Coroa julgar as questões e disputas legais que envolvessem cristãos e judeus.

A regulamentação das provas testemunhais de parte a parte também traria diferenciações ao longo de alguns reinados. Tradicionalmente, devido à "natural suspeita recíproca" entre os grupos, alimentada constantemente pela rivalidade econômica existente entre cristãos e judeus na Idade Média, "a regra estabelecida em Portugal desde os primeiros tempos prescrevia, com raras exceções, que fosse válido contra judeus o testemunho de cristão somente quando abonado por outro prestado por judeu, e vice-versa". A legislação apresentava características diferenciadas de acordo com a origem dos envolvidos. As leis portuguesas teimavam em não conceder paridade entre os depoimentos de cristãos e judeus, considerando este inferior àquele. Em tempos de D. Diniz, este rei ordenava o fim dos abusos contra os judeus nas questões judiciais, reconhecendo o direito aos judeus de reciprocidade na suspeita. Obrigava, para a validade do testemunho, que fosse provada pelo litigante cristão as alegações que fazia contra o réu judeu utilizando-se de testemunhas de ambas as crenças conjuntamente. Durante o período de D. Afonso V, as leis efetivadas por D. Diniz seriam alteradas, criando, para os judeus, "condição de direito inferior a dos cristãos":
Em disputas envolvendo cristão e judeu, "este provava com cristão ou com cristão e judeu - nunca só com judeu; - aquele, porém, provava só com cristão, sem necessidade de corroborar tal testemunho por outro judeu";
Em contendas entre judeus somente, "cada um deles podia provar suas alegações por meio de testemunha cristã, que esse testemunho valia como se o litígio fosse entre dois cristãos";
Em contendas em que as duas partes fossem cristãs, "o testemunho do judeu só tinha validade quando abonado por outro depoimento prestado por cristão, salvo acordo diferente entre os litigantes. Ficava, outrossim, facultado aos juízes admitirem ou repelirem o testemunho exclusivamente judaico em caso de crime grave presenciado unicamente por judeu" (LIPINER, 1982: pp. 40-44).


Apesar de delimitados por leis mais ou menos coercitivas de acordo com os monarcas entronados nos reinados iniciais, mas que, sem dúvida, vai se agravando com o passar do tempo e o aumento geral da intolerância geral cristã com os "matadores de Cristo", a presença judaica vivia antes um "clima de paz e protecção real, embora durante alguns períodos se exercesse uma maior acção repressiva sobre certas actividades judaicas e sobre o seu convívio com cristãos". Os descendentes de Israel eram tratados por alguns reis como "meus judeus", sinal do estado de sujeição do grupo perante a Coroa e da proteção real que desfrutam (FERRO TAVARES, 2000: pp. 11-19), posto constituírem importante fonte de riqueza tributária, recebendo, em conseqüência, "favores, proteção e amparo".

O relacionamento entre cristãos e judeus no mundo português encontrava particularidades que o diferenciava dos outros países da Europa cristã. De acordo com Anita Novinsky, as diferenças começam na própria origem: durante a Idade Média, Portugal foi "o país que antes de qualquer outro da Europa reconheceu os direitos dos judeus"; conseqüência desta política de "aceitação" social, é que "foi nessa parte ocidental da Península que a propaganda oficiosa antijudaica penetrou mais tarde". Os judeus encontravam-se nas principais cidades e vilas do território, atuando em variadas atividades econômicas, embora concentrados na exploração do solo. Apesar da forte influência do direito canônico, completa, "a religião não impediu nem prejudicou seriamente os contatos mútuos, as inter-relações grupais, sendo mesmo considerável o número de casamentos mistos". A situação, na prática cotidiana, mostrava-se em Portugal - como em nenhuma outra parte - favorável ao bom convívio entre os grupos:
"O povo não levava muito a sério as proibições dos representantes da Igreja e os monarcas portugueses foram muitas vezes recriminados de Roma por favorecerem aos judeus" (NOVINSKY, 1972: pp. 24-27)
Alguns monarcas procederiam de forma visivelmente mais branda para com os judeus. Foi o caso de D. Afonso III e D. Diniz, a dispensarem os hebreus, em determinadas situações, do pagamento de certos tributos ao Estado ou dízimos à Igreja, além de concessões outras que viabilizavam um melhor convívio entre os grupos no cotidiano, como a dispensa de trajarem vestimentas adornadas com divisas que facilitassem sua identificação pública, segundo imposição do IV Concílio de Latrão, realizado em 1215. D. Afonso V foi também pródigo em benefícios aos súditos mosaicos, alguns dentre eles a esbanjar luxo e riquezas, vestidos - à maneira dos mais destacados cristãos - de gala e com espada à cinta, montados em cavalos de estirpe, em meio à profusão geral de penúria e miséria. As medidas lateranenses, diga-se de passagem, nunca foram cumpridas à risca em Portugal. Alguns, influentes, freqüentavam os círculos mais privados, inclusive com a realeza, como foi o caso de um certo Isaac Abravanel, judeu importante e de farta circulação pela nobreza que, após longo período de convívio e amizade com o rei, foi obrigado a expatriar-se tempos depois por suspeitas de conspiração com Castela. De seu exílio lamentar-se-ia a sorte que lhe abandonara, ao relembrar os momentos felizes vividos na Corte, dando-nos detalhes riquíssimos da prática judaica que mantinha aberta e livremente e da política real em relação ao seu povo:
"Satisfeito encontrava-me em minha terra natal, usufruindo magnífica herança paterna, num lar abençoado por Deus, em Lisboa, a célebre capital do Reino de Portugal. O Senhor havia-me concedido prosperidade, abundância, honra e amigos. Construíra eu residências e faustosos balcões; era minha casa o ponto de reunião dos sábios; sabedoria e temor a Deus eram aí divulgados. Via-me benquisto no palácio do D. Afonso, este Monarca poderoso e de vastos domínios que reinava sobre dois mares, bem sucedido em todos os seus empreendimentos, deste soberano sentado no trono do Direito, praticando no País a clemência, a justiça e a virtude, que confiava em Deus, afastando-se do mal e almejando o bem de seu povo, sob cujo governo também os judeus obtiveram liberdade e salvação. À sua sombra aprazia-me tanto ficar, eu era chegado a ele, que sobre mim se apoiava e, enquanto viveu, freqüentei seu palácio" (KAYSERLING, 1971: p. 67).


Em resumo: os limites impostos aos judeus em Portugal eram até certo ponto fluidos, não se observando - quando estas existiam - as leis coercitivas contra o grupo hebraico. As judiarias são mais uma vez exemplo das continuidades no convívio em boa parte franco entre os grupos. Apesar das medidas proibitórias, judeus e cristãos continuariam ocasionalmente a habitar - estes dentro da judiaria; aqueles, fora, em zonas cristãs - locais que lhes eram legalmente impróprios, de acordo com as necessidades ou conveniências de cada um. Em estudo definitivo sobre o período, Elias Lipiner esclarece:
"É de se notar que as disposições restritivas referentes aos judeus do reino, quando transpostas para o campo da realidade cotidiana, não parecem ter funcionado eficientemente. Daí a constante menção, nas Ordenações quatrocentistas, a leis desrespeitadas e à sucessiva revigoração e readaptação destas a novas realidades - a sugerir que as disposições rigorosas nem sempre foram mantidas. Cedo convenceram-se os monarcas da injustiça de suas próprias ordenações, ou pelo menos da impossibilidade de sua rigorosa aplicação. Fosse porque os judeus, em defesa própria ou como desforço de agravos recebidos, tratavam de as iludir mediante subterfúgios, furtando-se ao seu cumprimento; fosse por conveniências políticas e administrativas supervenientes da própria coroa; os monarcas viram-se impelidos a atenuar generosamente o rigor de suas ordenações, em certos casos para facilitar a arrecadação dos tributos nas comunas dos judeus; noutros porque estavam necessitados de cooperação intelectual dos judeus" (LIPINER, 1982: p. 17).


Convencidos ou não da injustiça de suas leis relativas aos judeus, o certo é que os monarcas tinham noção da dificuldade em fazê-las cumprir e dos problemas que acarretariam, sobretudo porque feriam os interesses do reino. Existiam, para demonstrar os comprometimentos do reino com o cristianismo e sua Igreja, e prestar-se contas socialmente, beneficiando os cristãos de origem. Se existiam no papel, a prática era outra. Sem dúvida que os judeus foram prejudicados pelo fato de serem judeus numa sociedade cristã, sustentando o peso desta diferença que os fazia legalmente inferiores. Parafraseando Kayserling, viviam quase que num regime de "sub-Estado dentro de um Estado". Todavia, e apesar dos impedimentos e limitações legais, em boa parte do tempo em que viveram como judeus em Portugal, exerceram livremente o judaísmo, encontrando espaços para que não sofressem radicalmente a força do braço do Estado por conta de sua fé distinta.

Como em nenhuma outra parte da Europa cristã, os judeus gozaram em Portugal de uma legislação que, se os preteria face aos cristãos em certos aspectos, lhes garantia a sobrevivência enquanto grupo sem o mesmo grau de perseguições vividos em outras áreas, o que lhes possibilitava uma participação cada vez maior e mais ativa nas estruturas social e econômica do reino. O aumento das perseguições na Europa e as pressões dela decorrentes, assim como os acontecimentos em Espanha durante o processo de Reconquista, mormente na segunda metade do século XV, mudariam este quadro e trariam um triste fim ao período em que os hebreus conviviam abertamente com os cristãos no reino fundado séculos antes por Afonso Henriques.
Tempo de perseguição, tempo de exclusão
O processo de dispersão judaica pelo mundo viveria seus primórdios na Antigüidade, reflexo não apenas da própria tradição e cultura hebraicas mas, principalmente, de uma vasta gama de imposições políticas levadas a cabo pelo Império Romano durante o período de dominação de Roma sobre os judeus, obrigando-os ao abandono de parte de seus costumes tradicionais para adaptarem-se à nova realidade, espalhando-se por diversas regiões do mundo conhecido. De origem mais remota que o próprio controle romano sobre a região, a Diáspora judaica seria favorecida e intensificada a partir de 70 d. C., ganhando força após a queda de Jerusalém e a destruição do Segundo Templo sob as ordens de Tito (ELIADE & COULIANO, 1999: p. 216) - encarregado por seu pai, o imperador Flávio Vespasiano (69-79), de chefiar o exército romano na campanha da Judéia. O processo de Diáspora atravessaria quase dois milênios, tendo durado, oficialmente, até a criação, em 1948, do Estado de Israel.
Durante cerca de 1880 anos de exílio, o povo judeu passaria por situações de aceitação e convívio social as mais diversas nas áreas de migração. Destituídos de nação própria, os judeus da dispersão ver-se-iam obrigados a procurar constantemente um equilíbrio entre o respeito às estruturas basilares do judaísmo e a necessidade de adaptação às especificidades encontradas nas regiões que os acolhiam, cientes da impossibilidade de manutenção da totalidade das práticas caras ao judaísmo tradicional vividas no momento anterior à queda do Segundo Templo. Buscavam, desta forma, manter viva a essência estruturalizante da fé dos antepassados, mas viam-se, ao mesmo tempo, identificados "com as culturas que os hospedavam", obrigados a assimilar alguns de seus principais aspectos. As diferenças culturais entre o judaísmo e as tradições das regiões hospedeiras, porém, seriam responsáveis por um certo desconforto no relacionamento com as maiorias não-judaicas e, na longa duração, causariam não apenas diferenças dentro do próprio judaísmo - adaptado às realidades de cada região -, mas o aparecimento de alguns conflitos entre os judeus e as sociedades que os acolheram: "sua maneira de viver, instrução e disciplina, ambição e exclusivismo, circuncisão e leis alimentares, sua aversão a imagens e a guarda do sábado" trariam um número crescente de simpatizantes para a crença judaica, assim como de indivíduos que viam com aversão e animosidade os costumes do povo judeu, alimentado as hostilidades que se multiplicariam com o tempo (BORGER, 2001: pp. 238-241).


Os judeus seriam vitimados por um crescente processo de intolerância social, que se agravaria, num primeiro momento, durante o período em que o Ocidente cristão dedicou esforços à guerra de conquista da Terra Santa, através de célebre movimento que passou à História sob a designação de Cruzadas e que, se não obteve sucesso efetivo em seu intuito conquistador, por outro lado foi dos grandes responsáveis pelo arrefecimento de todo o tipo de bom convívio religioso que pudesse existir entre cristãos e judeus em terras do Ocidente. Foi nessa época que ocorreram, por exemplo, os massacres de judeus em algumas regiões da Europa Central perpetrados pelos exaltados soldados cruzados a caminho da Palestina, que justificavam e validavam a matança generalizada como uma luta contra os principais inimigos de Deus:
"Nós desejamos ir combater os inimigos de Deus no Oriente; mas temos judeus sob os olhos, raça mais inimiga de Deus do que nenhuma outra: é tomar a coisa toda pelo avesso" (POLIAKOV, 1979: p. 36).


Mormente nas regiões feudais da Europa cristã, os judeus acabariam vítimas de preconceitos sociais e perseguições, identificados como o "mal absoluto", carregando a síndrome de "povo maldito" e deicida, herdeiros em potencial da maldição desencadeada pelos supostos crimes dos seus antepassados, vistos como responsáveis pela morte do Messias católico, entendido, pelos cristãos, como encarnação da essência e verbo divinos. Por isso mesmo, faziam-se os judeus, perante os olhos do Ocidente, merecedores dos castigos e vinganças que lhes eram imputados pelo assassínio de Jesus Cristo e males humanos daí decorrentes. Este antijudaísmo vivenciado em boa parte do Velho Continente, todavia, não encontraria inicialmente eco na Península Ibérica, onde os judeus gozavam de considerável tolerância social, miscigenados com a população local e com os mouros, formando o que Jean Delumeau definiria, referindo-se à maior das nações ibéricas, como a "Espanha das três religiões, um país tolerante porque não homogêneo", onde os judeus somavam número próximo de trezentas mil almas misturadas ao resto da população ao fim do século XIII (DELUMEAU, 1989: p. 281), enquanto, neste mesmo século, "la legislación antijudía fue um rasgo común en toda Europa" (KAMEN, 1992: p. 18).

O desenrolar do Medievo hispânico caracterizar-se-ia pelo bom convívio e interação entre os seus grupos formadores. Segundo Pérez, o grau de adaptação dos judeus à península era formidável. Para os hebreus que habitavam as terras de Sepharad, aquela era "en todos los sentidos su pátria, la tierra de sus padres y antepassados", sem que formassem uma classe social distinta ou sofressem o peso das generalizações e discriminações contra os judeus recorrentes em outras partes: "los había ricos, los había pobres y de todos los niveles. Non tenían ninguna dedicación profesional que les fuera exclusiva", infiltrados em todos os ramos da economia:
"el abanico profesional de los judíos era tan amplio y variado como el de cualquier otro grupo social. De no ser por la religión, nada les distinguía del resto de la población" (PÉREZ, 1993: p. 12).


Em épocas de dominação muçulmana, seriam os judeus responsáveis pelo desenvolvimento das ciências aplicadas, mesclando conhecimentos e técnicas das três culturas monoteístas que ocupavam o espaço ibérico. "Encontram-se entre eles diferentes categorias de sábios: médicos, cartógrafos, astrônomos, alquimistas e tradutores. São numerosos os exemplos de médicos que se fazem imprescindíveis nas cortes, cidades e vilas, situados como agentes e portadores privilegiados da cultura" (PEDRERO-SÁNCHEZ, 1994: p. 23), fato que merece ainda maior distinção se levarmos em conta a situação de exceção que isto representava, devido à carência geral que se vivenciava de conhecimento científico e a dificuldade - em todos os sentidos - da circulação de textos e da formação de leitores capacitados em toda a Europa.
Do lado lusitano da fronteira, o quadro não era diferente, vivendo a comunidade judaica dias de tranqüilidade e estabilidade social, contribuindo para a formação de uma cultura regional específica, "com grande brilho nas formas literárias, na medicina e nos estudos filosóficos". Embora surgissem por vezes manifestações de explosão popular anti-judaica, incentivadas e lideradas em boa parte pelo radicalismo de homens ligados à Igreja (MAIA, 1995: p. 33), não passavam de fatos esporádicos e isolados, reflexo ofuscado do que ocorria com maior intensidade em outros recantos da Europa, mas ainda insuficientes para desencadear as mesmas ondas de terror e dizimação vividas fora da Ibéria.


Os conflitos entre judeus e cristãos, embora inicialmente fossem fluidos na Espanha - se comparado ao que ocorria no além-Pirineus -, já traziam um crescente incômodo e preocupação à comunidade judaica. Na Baixa Idade Média, o fanatismo popular contra os "assassinos de Cristo" encontraria, aos poucos, novos adeptos imbuídos em vingar a cristandade, interessados em fazer a justiça divina com as próprias mãos. Durante as últimas centúrias de livre convívio religioso em território hispânico, dar-se-ia uma clara modificação no ambiente social que, se antes praticamente desconhecia conflitos, doravante os veria com cada vez maior incidência:
"con referencia a los siglos XII y XIII, época de plenitud y armonía; en el XIV el ambiente se ensombrece: el hambre, la peste, el cisma, las luchas religiosas y sociales sacuden Europa entera, anunciando el fin de una edad y el difícil alumbramiento de otra nueva" (ORTIZ, s/d.: p. 15).
Esta nova era anunciada seria marcada por uma série de interdições e um crescente isolamento no convívio entre hebreus e cristãos, a refletirem-se no aumento dos problemas entre os grupos, fruto do agravamento de uma intensa crise social transformada rapidamente em fanatismo religioso. O século XIV marcaria um aumento generalizado da onda de anti-semitismo na Europa. "A partir da segunda metade do século XIV", explica Poliakov, "os ódios antijudaicos atingem uma tal acuidade que podemos ousadamente datar desta época a cristalização do anti-semitismo em sua forma clássica, a que levará mais tarde um Erasmo a constatar: Se cabe a um bom cristão detestar os judeus, então somos todos bons cristãos" (POLIAKOV, 1979: p. 106).
A galopante deterioração sofrida no processo de aceitação do judeu na sociedade hispânica, refletida nas crescentes ondas de violência, daria sinais evidentes das mudanças em vigor: no ano de 1328, ocorreriam seguidos assaltos às aljamas de Estella, Funes, Viana e outras cidades da região de Navarra. Vinte anos mais tarde, seriam atacadas várias sinagogas na região da Catalunha, momento em que os carrascos aproveitavam para justificar a barbárie praticada acusando os judeus pela Peste Negra que então grassava. Cerca de duas décadas depois, novos incidentes ocorreriam: em 1367, uma leva de ataques atingiria as aljamas de Villadiego e Aguilar de Campos e, no ano de 1369, a destruição da aljama de Toledo. Nada, contudo, que pudesse ser comparado, em fanatismo, participação popular, violência e número de vítimas, aos fatídicos acontecimentos de 1391.


Seu trágico auge ocorreria com o estourar dos conflitos e perseguições aos descendentes de Israel iniciadas e incentivadas por mais de uma década pelo fanatismo de alguns setores do clero, principalmente através de Fernán (ou Ferrant) Martínez, Arquidiácono de Écija, Sevilha - então a mais rica e populosa das cidades de Espanha -, homem de destaque junto ao clero e de bom relacionamento com a Corte, ex-confessor da rainha-mãe que, malgrado as sucessivas intimidações do próprio monarca para que cessasse com a incitação pública à violência antijudaica, não pouparia argumentos que incentivassem o povo cristão em direção ao massacre. Comparava-se aos grandes profetas de Israel, inclusive Moisés, alegando, com desvirtuado conhecimento de causa, fundamentação divina para a campanha que capitaneava: "não posso me impedir de pregar e de dizer dos judeus aquilo que disse meu Senhor Jesus Cristo nos Evangelhos", desperdiçando seus sermões e pregações de efeito, a repetir insistentemente que "um cristão que fizesse mal ou matasse um judeu não iria causar nenhum desprazer ao rei e à rainha, pelo contrário" (POLIAKOV, 1996: p. 132). Apesar de seguidamente desautorizado pelo rei Juan I ao longo de seus treze anos de pregação segregacionista, a centelha de ódio disseminada pelo discurso do desobediente arquidiácono estimularia perseguições avassaladoramente sangrentas nos últimos anos do século XIV. Aproveitando-se da morte do arcebispo de Sevilha e da vacância temporária daquele posto, assim como do falecimento de Juan I e da chegada ao trono de Henrique III, moçoilo de apenas dez anos, tornou-se administrador da diocese, dando início, então, a um período de violência desmedida contra os judeus, que duraria de 1391 a 1414, aproximadamente. Em breve espaço de tempo, toda a Espanha conheceria a fúria antijudaica:
"El movimiento comenzó con el asalto y destrucción de la judería de Sevilla (junio de 1391), seguida de la muerte o el bautismo forzado de la mayoría de sus moradores. Con la rapidez del rayo se propagó, sin respetar las fronteras políticas, por otras poblaciones de Andalucía, Levante y Cataluña; fueron asaltadas las juderías de Valencia, Barcelona, Gerona, Lérida y otras muchas ciudades" (ORTIZ, s/d.: pp. 15-16).


Nunca até aquele momento as tensões entre os grupos haviam causado tamanha comoção popular, a incentivar a fúria generalizada contra a comunidade hebraica. O quadro que se desenhava, estimulado pelo ecoar fanático das palavras de Martínez, era de total intolerância aos judeus. Incentivava a destruição das sinagogas ou a transformação destas em igrejas. O caos complementava-se com a perseguição, morte e destruição dos símbolos judaicos e de seus ambientes sagrados, sob os gritos de "a morte ou a água benta", gerando uma série de desmandos e abusos que fugiram ao controle do Estado e, num período de três meses, acabaria modificando por completo as bases da estrutura social hispânica:
"las masas sevillanas, fanatizadas por este personaje, se echaron a la calle y asaltaran la importante judería de la ciudad. Unas cuatro mil personas fueron asesinadas, debiendo convertirse al cristianismo casi todas las restantes que en ella habitaban para poder salvar sus vidas. La judería dejó de existir y sus casas, tiendas y sinagogas fueron entregadas a los caballeros cristianos" (BLÁZQUEZ MIGUEL, 1988: p. 14)
Os violentos ataques colaborariam diretamente para a diminuição do número de judeus na Espanha: além dos indivíduos mortos durante os massacres, muitos foram levados a emigrar, em 1391 e nos anos subseqüentes, à procura de condições mais seguras de vida. Outra saída adotada para escapar às ondas de violência foram as conversões, que ocorreram em massa e que, não bastassem ser a solução mais imediata para fugir ao morticínio, eram incentivadas pelas pressões oficiais, que reservavam aos que insistissem na manutenção judaica a reclusão em bairros especiais e a utilização de distintivos, sobre as vestimentas, que os identificassem, transformados em alvos vivos e ambulantes da fúria popular. Alargava-se assim o número de cristãos-novos e, dentre estes, o de criptojudeus ou, no caso específico da Espanha, marranos - termo local para designar, dentre os judeus que escolhiam o caminho da cristianização, aqueles que continuavam a seguir firmemente a antiga fé.


Ao longo dos séculos XIV e XV, desenvolver-se-ia na Espanha um quadro singular, em que, durante pouco mais de cem anos, conviveriam legalmente cristãos, ex-judeus conversos ao cristianismo e judeus que permaneciam fiéis aos preceitos da antiga lei. Com o agravamento das perseguições aos judeus no reino a partir de 1391, intensificou-se o processo de conversão dos judeus ao catolicismo, embora a prática judaica não houvesse sido proibida e a maior parte dos judeus insistisse - apesar dos violentos conflitos e intimidações sociais - em manter a fé dos antepassados. Os conversos de Espanha viviam, assim, num flagrante estado de dubiedade, mantendo relações, ao mesmo tempo, tanto com cristãos quanto com judeus, presenciando os costumes de uma e de outra fé, refletindo esta dubiedade em sua prática cotidiana cristã, alimentada com costumes da religião judaica. Como conseqüência, o problema do criptojudaísmo manter-se-ia fortemente presente: embora alguns indivíduos adotassem fervorosamente a boa nova católica, é indiscutível que muitos dos conversos professassem, ocultamente, o judaísmo, abandonado menos por convicções pessoais do que por pressões externas, como o grave risco de ataques pelos cristãos mais radicais.

O convívio com os judeus dentro do próprio reino tornava ainda mais consistente a possibilidade de contato com a fé do passado e seus significados principais, dificultando o controle sobre a dedicação cristã dos conversos. Os desconfiados perseguidores do marranismo atentariam com rigor exagerado para o fato. A convivência com aqueles que perseveravam em manterem-se fiéis ao judaísmo tornava os conversos espanhóis vítimas generalizadas de acusações sobre a falsidade de sua aceitação cristã, vista como ameaça à pureza católica por aqueles que não concordavam com a sinceridade das conversões em massa dos antigos judeus, gerando conflitos entre os grupos.
Mesmo com o advento da Inquisição hispânica e durante o período de catorze anos que separa o surgimento do Santo Tribunal da adoção das leis de monopólio religioso naqueles domínios, os judeus ainda possuíam garantias legais de liberdade de crença no reino. O Santo Ofício tinha sua alçada limitada a cristão-velhos e conversos, julgando as heresias contra o catolicismo e procurando impedir a volta destes ao judaísmo. Aliás, fora a extensão do problema que significava o grupo de conversos para a sociedade o grande responsável pela proliferação das petições em prol do estabelecimento de um tribunal inquisitorial para a Espanha. Não possuía o Santo Ofício, contudo, força de ação sobre os que se mantinham judeus de fato, permanecendo imunes à atuação inquisitorial por não terem recebido o batismo cristão. Apenas com a publicação dos decretos de 1492 os judeus espanhóis seriam finalmente banidos do reino recém-unificado pelos reis católicos, pondo fim à livre convivência destes com cristãos velhos e conversos, inaugurando um longo período de unicidade cristã na região. O judaísmo, todavia, sobreviveria, ainda que ocultamente, através do criptojudaísmo marrano.
O último século de judaísmo permitido em terras hispânicas seria marcado pelo estigma do medo, em que a exacerbação da violência transformar-se-ia em triste rotina, acompanhada de leis discriminatórias e preconceitos sociais, além de fugas, martírios pessoais e familiares e conversões desesperadas de indivíduos que apressavam-se em beijar a cruz no ímpeto de escaparem às chacinas. O ódio aos judeus não tardaria a se transformar em ódio aos conversos, alargando-se o anti-semitismo em terras espanholas. Para Anita Novinsky, o estado do neófito era ainda mais passível de discriminação do que aquele vivido pelos hebreus:
"o ódio e a hostilidade demonstrados contra os conversos é muito mais violento e feroz do que o havia sido em qualquer tempo contra os judeus. Convertidos ao Catolicismo, os antigos judeus passaram a ser alvo de críticas intermináveis".
O momento final da Guerra de Reconquista, iniciado com a chegada ao trono de Isabel de Castela e Fernando de Aragão (1474-1479) e completado com a tomada de Granada em 1492, levaria em conta os conflitos sociais em seu processo de unificação do mundo hispânico. O longo período dedicado à luta pelo surgimento de um estado sob o domínio dos reis católicos acabaria por gerar "uma fortíssima identificação entre religião e território" (NOVINSKY, 1972: pp. 28-32), transformando-se o processo de Reconquista estatal numa espécie de Cruzada ou Guerra Santa contra o infiel, onde era preciso não apenas derrotar o inimigo, mas expulsá-lo, em nome da fé de Cristo. A restauração da unidade monárquica necessária para o surgimento de uma nação moderna significaria a urgência de coesão do corpo social. Derrotados os mouros "invasores", sobrevivia outro inimigo, sem armas, infiltrado socialmente. Esta coesão passava obrigatoriamente pela idéia de unidade religiosa, que seria um dos pilares em que se firmava a unidade do reino, calcada "na criação de uma unidade real absoluta, apoiada na unidade de fé" (MAIA, 1995: p. 35). Para tanto, era necessário aumentar os rigorismos sobre a religião, atacando os pensamentos antagônicos à pureza da fé católica. Fruto desta busca seria o despertar das dúvidas pela sinceridade da fé dos judeus convertidos. A Inquisição surgiria então neste quadro.


As negociações entre a Coroa e o papado pela introdução da Inquisição hispânica corroborariam para a publicação da bula Exigit sincerae devotionis affectus, expedida pelo Papa Sisto IV em 1o de novembro de 1478, em que os soberanos de Espanha recebiam permissão para a nomeação de inquisidores. Esta bula, informa Bethencourt, "reproduzia os argumentos régios sobre a difusão das crenças e dos ritos mosaicos ente os judeus convertidos ao cristianismo em Castela e Aragão, atribuía o desenvolvimento dessa heresia à tolerância dos bispos e autorizava os reis a nomear três inquisidores (entre os prelados, religiosos ou clérigos seculares com mais de quarenta aos, bacharéis ou mestres em teologia. Licenciados ou doutores em direito canônico) para cada uma das cidades ou dioceses dos reinos". A bula papal permitia ainda aos monarcas não apenas o direito de nomeação, mas igualmente de revogação ou substituição dos inquisidores (BETHENCOURT, 2000: p. 17). Dois anos depois, em Sevilha, ocorreria a instauração e o início dos trabalhos do primeiro Tribunal do Santo Ofício da Inquisição espanhol. O primeiro auto-de-fé seria realizado já no ano seguinte, no dia 6 de fevereiro, com o relaxamento de seis condenados ao braço secular. Léon Poliakov informa ainda que, devido à preocupação generalizada com a contaminação dos conversos pelos judeus, foram tomadas, ao mesmo tempo, "medidas para impor uma rigorosa separação entre os conversos e os judeus declarados, considerados como corruptores daqueles" (POLIAKOV, 1996: p. 157).

Aos poucos, a Inquisição esticaria os braços e intensificava sua atuação por todo o território sob o controle dos Reis Católicos Fernando e Isabel. Em bula datada do segundo dia de agosto de 1483, o Tribunal ganhava caráter permanente, sendo o célebre Frei Tomás de Torquemada nomeado para o cargo de Inquisidor Geral de Castela e Aragão. Não objetivava legislar sobre o grupo judeu que resistia às ameaças públicas desde os acontecimentos que marcaram o final do século XIV, posto que tinham, por direito de lei, a garantia de manutenção da fé de seus antepassados. Seu poder limitava-se à alçada cristã. Daí, seus alvos serem os judaizantes, e não os judeus, de quem aqueles deveriam ser afastados. Procurava antes verificar o comportamento geral dos neófitos, punindo-os em seus desvios heréticos, e analisar a veracidade da conversão de antigos judeus assimilados pelo cristianismo, evitando o retorno destes à antiga fé. Segundo Joseph Pérez,
"beaucoup de convertis avaient embrassé le christianisme sans arrière-pensée et sans esprit de retour; seuls, quelques individus prêtaient le flanc à la critique, mais tous les conversos étaient frappés de la même hostilité, victimes des mêmes prejugés; tous étaient indistinctement soupçonnés de judaïser plus ou moins; tous étaient confondus dans l’appellation injurieuse de marranos. D’où l’idée de créer une jurisdiction spéciale, um tribunal qui serait chargé d’enquêter sur lês affaires douteuses, qui punirait les judaïsants, mais laverait les autres, la majorité, disait-on, de l’infamie".
Embora a preocupação com os rumos da fé que dera origem ao Santo Ofício espanhol tivesse como objetivo inicial velar pela pureza cristã, buscava, em suas entrelinhas, continua o autor, "à expulser radicalement ceux qui étaient décidés à rester juifs" (PÉREZ, 1971: p. 35). Os próprios decretos referentes à expulsão dos judeus fariam referência explícita à instauração do Tribunal catorze anos antes. Tudo fazia parte da lógica de unicidade buscada pela política de Reconquista: "a expulsão não só era parte integrante como primordial desta" (ASSIS, 1998: p. 22). Concluída com êxito a unificação, buscava-se o processo de complementação rei-reino e território-comunidade, que apresentaria, como desdobramento, a identificação entre autoridade e clero, a tornar bastante conflituosa a convivência das diferentes comunidades religiosas no reino:
"Ao completar-se a grande empresa de unificação da Espanha em mãos dos cristãos, desmoronou-se a base política que servia de fundamento para a existência da população judia dentro das suas fronteiras. A construção de um Estado forte, empenhado em eliminar as forças centrífugas, e além disso expansionista, conduz à unanimidade que supunha a integração total ou a rejeição" (KRIEGEL, 1979: p. 226).
Vitoriosos na campanha contra os mouros, os reis católicos entrariam solenemente em Granada no segundo dia de 1492, completando o processo de Reconquista. Passados menos de noventa dias, em 31 de março, era assinado o decreto de expulsão de todos os judeus (implicitamente, referia-se aos que não aceitassem aquele ultimato de conversão ao cristianismo) do reino. O decreto de expulsão enumerava os motivos dos monarcas para a adoção de tão radical medida num reino anteriormente referido como Espanha das três religiões:
"Fomos informados pelos inquisidores e por outras pessoas que o comércio dos judeus com os cristãos acarreta os piores males. Os judeus esforçam-se ao máximo para seduzir os (novos) cristãos e seus filhos, fazendo com que tenham os livros de orações judaicas, avisando-os dos dias de festa judeus, fornecendo-lhes pão ázimo na Páscoa, instruindo-os sobre as comidas proibidas e persuadindo-os a seguir a Lei de Moisés. Como conseqüência, nossa santa fé católica encontra-se envilecida e rebaixada. Chegamos, portanto, à conclusão de que o único meio eficaz para pôr fim a esses males consiste na ruptura definitiva de toda relação entre judeus e cristãos e isso só pode ser alcançado com a expulsão daqueles de nosso reino" (POLIAKOV, 1996: p. 166).


Aos expulsos, dava-se um curtíssimo prazo de quatro meses para deixarem a Espanha. Traçavam-se as normas para a retirada: o prazo duraria até 31 de julho seguinte, enquanto estariam sob a proteção real. Os possíveis transgressores ficariam sujeitos à pena de morte e confisco dos bens pessoais. Se algum cristão fosse acusado de qualquer tipo de colaboração, seria punido também com a perda de seu patrimônio. Até a data final, os judeus tinham liberdade para usufruir de seus bens, tendo autorização para levar tudo que desejassem, à exceção de ouro, prata, cavalos e armamentos (VINCENT, 1992: p. 26). Aproveitando-se do desespero da comunidade judaica, que tentava sem sucesso a prorrogação do prazo de expulsão, o clero espanhol dedicava-se a uma intensa - e de bons resultados - campanha de conversão daqueles que relutavam entre a lei de Moisés e a permanência em solo hispânico. O padre Andrés Bernáldez descreve os dramáticos preparativos para a partida:
"Vendieron y malbarataran cuanto pudieron de sus haciendas... y en todo hubieron siniestras venturas, ca hubieron los cristianos sus haciendas, muy muchas y muy ricas casas y heredamientos por pocos dineros; y andaban rogando con ellas y no hallaban quien se las comprase y daban una casa por un asno y una viña por poco paño o lienzo, porque no podían sacar oro ni plata".


Ou ainda, continuando a narrativa das desgraças vividas pelos judeus em retirada que, de exímios negociantes, viam-se obrigados - para o deleite dos cristãos que se sentiam prejudicados pelas negociatas com os hebreus - a venderem seus bens em acordos humilhantes e desvantajosos, ou ao ainda mais aflitivo abandono de suas riquezas imóveis, moedas e jóias, tentando juntar forças para a longa e triste viagem que se iniciava com a partida de Castela:
"casaron todos los mozos y mozas que eran de doce años arriba unos con otros, porque todas las hembras desta edad arriba fuesen a sombra y compaña de maridos... Salieron de las tierras de sus nacimientos chicos y grandes, viejos y niños, a pie y caballeros en asnos y otras bestias, y en carretas, y continuaron sus viajes cada uno a los puertos que habían de ir; e iban por los caminos y campos por donde iban con muchos trabajos y fortunas; unos cayendo, otros levantando, otros muriendo, otros naciendo, otros enfermando, que no había cristiano que no hubiese dolor de ellos y siempre por do iban los convidaban al bautismo y algunos, con la cuita, se convertían y quedaban, pero muy pocos, y los rabíes los iban esforzando y hacían cantar a las mujeres y mancebos y tañer panderos" (BERNÁLDEZ, 1962).
Expulsos da Espanha, os judeus partiriam, de acordo com suas possibilidades pessoais, para as regiões que lhes permitiam a livre crença. Alguns romperiam a fronteira francesa, por vezes continuando até a Inglaterra e a Alemanha; outros, buscariam asilo nos Países Baixos; seguindo para a região do Levante, um contingente atingiria Constantinopla; por mar, uma parcela alcançaria o geograficamente próximo Norte da África. Um imenso número escolheria permanecer na Península, encontrado proteção no Estado português, ainda sob o reinado de D. João II (1481-1495), logo sucedido por D. Manuel, soberano que, de fato, enfrentaria o problema judaico no reino.


A situação outrora favorável aos judeus em Portugal começaria a agravar-se em conseqüência dos acontecimentos na vizinha Espanha. A entrada dos fugitivos, todavia, seria negociada, de modo a garantir lucros e vantagens para Portugal. O monarca português, apesar das pressões em contrário advindas de respeitável parcela de seus conselheiros, e consciente das vantagens para o reino com a chegada desta leva de indivíduos, aceitaria a entrada dos judeus de Espanha, embora limitando a fixação de residência ao cômputo de 600 famílias, mediante pagamento de taxa per capita, e a garantia de que deixariam o país no prazo de oito meses, nos navios que o rei se comprometia a colocar à disposição para a empreitada, sob pena de escravização para os relutantes. Os componentes dos seiscentos fogos seriam divididos entre as cidades de Lisboa, Porto, Évora e Coimbra. Vencido o prazo de oito meses, explica Angela Maia, "uma parte desses refugiados embarcou para a África do Norte; outra, ou não conseguiu ou não quis deixar Portugal. Os que ficaram foram reduzidos à escravidão, vendidos ou doados pelo rei" (MAIA, 1995: p. 37).
Ingênuo, todavia, aceitar a exatidão simplista dos números que dão conta dos judeus entrados em território luso em conseqüência do processo de expulsão hispânica. Há de considerar-se fatores extras, como a considerável extensão e difícil vigilância da fronteira hispano-portuguesa, sobretudo a área de fronteira seca, a ser vencida em período climático favorável à transposição do percurso: o prazo de expulsão envolvia a primavera e o verão ibéricos, facilitando as condições para o exaustivo deslocamento. Supõe-se, igualmente, que a grande comunidade judaica portuguesa, certamente chocada com o drama de seus irmãos de fé na Espanha, deve ter colaborado para a entrada no reino de algumas famílias, resguardando-as de qualquer possível proibição feita por D. João II. Ademais, é ainda bastante presumível uma relativa facilitação para a entrada dos desesperados fugitivos dos domínios dos católicos Fernando e Isabel. Os interesses lusitanos devem, de alguma forma, ter colaborado para as travessias de uma considerável massa de judeus clandestinos vindos da Espanha.


Morto D. João II, a sucessão dinástica levaria ao trono D. Manuel, trazendo alvíssaras aos judeus espanhóis que restavam, sujeitos às penas anteriormente previstas. O novo monarca suspenderia os decretos de escravização, ciente da importância do grupo para seus interesses expansionistas, seja pelo aspecto do desenvolvimento econômico dentro do reino ou como intermediários nos negócios com o Oriente desejado, seja pelo conhecimento técnico imprescindível que representavam para a empresa de navegação e demais setores.
Os problemas não tardariam a reaparecer, num tom de cores ainda mais dramático. As alianças políticas com a Espanha tornar-se-iam decisivas na mudança da atitude real com os judeus. A morte prematura da esposa e o interesse, quiçá, de uma futura união entre as coroas a favorecer o monarca de Portugal, levaria D. Manuel a contratar núpcias com a Infanta Isabel, filha dos Reis Católicos de Espanha, que impunham, como condições essenciais para o negócio, um tratado de proteção contra as ameaças da França de Carlos VIII e, a pedido da própria infanta, a expulsão dos hebreus de Portugal do modo como ocorrera poucos anos antes na Espanha. O contrato matrimonial seria ratificado ao derradeiro dia de novembro de 1496. Já em dezembro, o monarca luso apressar-se-ia em assinar o decreto de expulsão de mouros e judeus, obrigados a deixar o reino num prazo de dez meses, a ser expirado em outubro de 1497. Os que ousassem desobedecer a ordem, estariam sujeitos à pena de morte e confiscação dos bens que possuíssem. Importante ressaltar a maior elasticidade do prazo concedido pelo soberano português quando comparado aos ínfimos quatro meses definidos pelos reis católicos de Espanha, sinal das tentativas que seriam feitas ao longo da dezena de meses ofertados por D. Manuel no interesse de amenizar as perdas com a saída do grupo hebreu e mantê-los sob seu domínio.
Embora decretasse o fim do judaísmo em Portugal com as leis de 1496, o monarca luso sabia das conseqüências maléficas para o reino da perda de contingente tão preparado e dos investimentos a médio e longo prazo para o reino que teriam melhor futuro se contassem com a participação da camada hebréia, visto a própria política de expansão ultramarina, a viver momento de ápice, posto constituírem respeitável parcela da burguesia lusa além de especialistas em variados ofícios. No período de tempo entre as decretações e o prazo máximo estipulado para a partida, algumas medidas seriam tomadas no ensejo de convencer à adoção voluntária do cristianismo por uma considerável parcela de judeus, garantindo-lhes determinadas vantagens, segurança e a oportunidade de permanecer no reino. Em fevereiro de 1497, discutiria o monarca com seus conselheiros de Estado a viabilidade de uma conversão forçada, atingindo um número maior de conversos. O mais triste e cruel dos atos governamentais contra os judeus viria no raiar de abril, e, para evitar maiores reações em contrário, durante as celebrações do sagrado dia da Páscoa. O Venturoso baixaria decreto obrigando a retirada das crianças judias até a idade de catorze anos da posse dos pais, para que fossem batizadas e confiadas a famílias cristãs, encarregadas doravante pela educação e catequização dos pequeninos. O desespero que invadiu a população hebraica e a indignação que causou aos cristãos de bom senso dão noção da dor e agonia enfrentados por estes pais:
"não somente dilacerante para os judeus, mas também provocou nos cristãos assombro e admiração; pois nenhum ser admite e suporta que mão humana lhe arranque seus filhos e se tal sucede a outrem, todos sentem, por compaixão natural, a mesma dor. Aconteceu então que muitos cristãos, levados por piedade, abrigavam e escondiam em suas casas os perseguidos, para que não se arrebatassem os pequenos de seus pais. Os gritos das mães, de cujo peito se arrancavam os filhos inocentes, os lamentos e queixumes dos pais, os soluços e choros dos recém-nascidos carregados à força em braços estranhos - isto transformou toda cidade e todo vilarejo num palco no qual se desenrolava um drama diabólico e desumano. Os pais, levados ao desespero, vagavam como dementes, as mães resistiam como leoas. Muitos preferiam matar os filhos com as próprias mãos; sufocavam-nos no último abraço ou atiravam-nos em poços ou rios, suicidando-se em seguida" (KAYSERLING, 1971: p. 112).


A proximidade da data reservada para a expulsão aumentaria a aflição do grupo judeu, enquanto o rei, se por um lado apresentava novas medidas de incentivo à conversão de última hora, por outro - objetivando os mesmo fins - não definia os portos reservados à partida dos judeus. Apontado, enfim, o porto de Lisboa, uma imensa leva calculada em mais de vinte mil pessoas se amontoaria à espera do transporte. A seqüência dos fatos dar-lhes-ia os adjetivos com que seriam reconhecidos a partir de agora: os representantes da gente da nação, seriam, à força, batizados em pé, e transformados em cristãos-novos. Tinha fim a saga judaica em Portugal. Batizados à força, os judeus seriam transformados em cristãos - mas cristãos-novos, herdeiros dos preconceitos reservados anteriormente aos que seguiam a fé de Moisés. Embora o problema estivesse resolvido oficialmente através da conversão geral, mantendo-se as imposições necessárias para os laços de união com a Coroa hispânica, os conflitos sociais de outrora entre cristãos e judeus continuariam a existir; agora, envolveria cristãos velhos e cristãos-novos, num processo que, a princípio, deveria representar o esforço final para a comunhão do núcleo cristão.

Procurando seduzir o grupo judeu que expulsava por decreto de 30 de maio de 1497, o rei concederia, antes mesmo de findar o prazo para a total retirada dos hebreus do reino, prazo de vinte anos em que beneficiava os conversos ao catolicismo, deixando-lhes livres de qualquer inquirição sobre o comportamento religioso que mantinham. Ou seja: durante o período estipulado, não haveria qualquer tipo de acusações sobre a eventual prática de judaísmo clandestino no reino. Também proibiria qualquer discriminação pública contra o novo grupo. Com este abono ficariam os conversos livres das pressões sociais de serem culpados ou incriminados por possíveis práticas religiosas da antiga fé. Em abril de 1512, novo prazo de não-perseguição seria somado ao período inicial, através da prorrogação da isenção de inquérito sobre crimes de fé, esticando em dezesseis anos a proibição de perseguição religiosa sobre os batizados em pé. Em tese, a proteção aos judeus vigoraria até 1533! Acreditava o rei, explica Saraiva, que o condicionamento religioso dos neoconversos à nova religião enfraqueceria as resistências judaicas, findando pela completa assimilação do novo grupo na sociedade em que estava inserido:
"Os antigos Hebreus tiveram de submeter-se quotidianamente ao culto público cristão, aos ritos e à disciplina da Igreja. Evidentemente que as primeiras vítimas da conversão forçada o não fizeram de coração sincero. Mas um ritual que se pratica ao longo dos anos e das gerações não pode manter-se indefinidamente como uma atitude hipócrita ou forçada. O praticante é condicionado pela prática; o grau desse condicionamento é função do tempo e da pressão exercida pelo meio integrador. Notemos, a propósito, que, pelo menos no mundo ocidental, os cultos dominantes foram impostos pela pressão do poder e não pela adesão espontânea das almas. Cujus regio ejus religio" (SARAIVA, 1985: p. 38).
A partir de 1515, contudo, a política de bom convívio levada a cabo pelo monarca pareceria dar sinais de cansaço - reflexo das pressões sociais sobre o grupo neoconverso que começavam a tornarem-se mais constantes -, e os embaixadores portugueses, a mando do rei D. Manuel (1495-1521), começariam a negociar com o Papa a criação de um tribunal inquisitorial em Portugal aos moldes do que funcionava na Espanha. Depois de difíceis negociações, marcadas por idas e vindas de ambos os lados, e de tentativas incipientes de implantação, o Tribunal do Santo Ofício português começaria seus trabalhos no ano de 1536, já durante a vigência do reinado de D. João III (1521-1557), com a publicação da bula Cum ad nihil magis e a nomeação do bispo de Ceuta e confessor do rei, D. Diogo da Silva, para o cargo de primeiro inquisidor geral do reino. A Inquisição portuguesa teria como principais vítimas e uma das fortes razões para sua criação a necessidade de vigilância sobre o comportamento dos cristãos-novos.
O surgimento da Inquisição nos países ibéricos ocorreria em circunstâncias diversas. O Tribunal português é implantado num instante em que os judeus, oficialmente, não mais existiam em solo lusitano há cerca de quatro décadas; o monopólio cristão, já era realidade, e os seus transgressores, eram julgados como hereges. Agia, assim, sobre a totalidade da população, embora os cristãos-novos, vistos como prováveis judaizantes fossem, reconhecidamente, seu principal alvo. Na Espanha, a instauração do Santo Ofício dar-se-ia quase um século depois das conversões em massa ocorridas em decorrência dos massacres de 1391, no ano de 1478, durante a primeira década de reinado de Fernando de Aragão e Isabel de Castela, em momento anterior ao Édito de expulsão. Por mais de uma década após o aparecimento da Inquisição nos domínios dos Reis Católicos - de 1478 a 1492 -, os judeus espanhóis conviveriam livremente com cristãos velhos e antigos judeus convertidos à fé de Cristo. Neste período, a ação do Tribunal seria implacável, procurando evitar a volta da numerosíssima população de conversos à prática do judaísmo, mas não atingiria diretamente a população de judeus que existia legalmente em território hispânico. A Inquisição seria elemento decisivo na unificação estatal, que alçaria a unidade da fé à condição de principal elo de união em torno do estado nascente. Daí sua importância no processo de cristianização que culminou com as leis de expulsão adotadas por Fernando e Isabel. Em Portugal, o Tribunal somente apareceria séculos após o processo de unificação política iniciado com as conquistas de Afonso Henriques e completado sob os auspícios da Revolução de Avis ao apagar do século XIV, sem que possuísse nenhuma relação direta com a consolidação efetiva do Estado português.
Como conseqüência, o alargado período de bom convívio entre judeus e cristãos em Portugal e Espanha no instante anterior às manifestações de intolerância social radicalizadas a partir dos massacres século XIV acabara por tornar ainda mais dramática a Diáspora ibérica...

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