Monday, June 12, 2006

Este medo que somos - Portugal Hoje de José Gil





André Veríssimo, Pres. KoaH








Podemos encontrar na questão da corporeidade e, na transformação relacional que o corpo como mediação de pensar produz, uma ética de afirmação: ou uma política de corpos. É o mesmo esboço semiológico que Gil nos oferece como se procurasse revitalizar Espinoza. [1]

Seguindo este paradigma na sua filosofia da afecção Espinoza descreve a constituição de “boas ideias” através de dois corpos que se juntam quando dois corpos se encontram, a sua influência mutual não é decidida pela discussão (acerca da verdade, …) através da troca de argumentos mas dentro do quadro de mútuo afecto, i. é, da sua conexão através da “expressão”. A formação do senso comum começa quando dois ou mais corpos, aqui corpo pode significar corpo “intelectual” ou corpo de conhecimento – interfere e produz os assim chamados afectos agradáveis. Os juízos morais não são obtidos através do senso comum mas deduzidos não pelo respeito para com uma comunidade hipotética impossível da humanidade inteira, mas expressam uma conjunção com o outro ou com os outros. A forma de ser em torno da plasticidade e ternura que nos caracteriza enquanto portugueses.

O fazer da imanência vê-se assim. Todas as referências ao corpo caracterizam um modo imanente. Há assim uma renúncia à reversão à transcendência como significado ou lei ou mesmo autoridade. A actualização deste processo de um evento é algo imanente no tempo e o tempo não é a medida transcendente do evento. Os julgamentos morais podem assim resultar na diplomacia dos jogos entre corpos como resultados imanentes que se inscrevem na afecção de corpos e não numa espécie de conhecimento universal.

Somos o que fazemos.

Os escritos de Deleuze reabilitam o fenómeno clínico do masoquismo e contra a sua ligação conceptual ao sadismo das análises freudianas. Um território [Capitalismo e Esquizofrenia][2] é num sentido etológico compreendido como um espaço de um grupo o que redita a interactividade os espaços nomádicos presentes como delimitação e empobrecimento da experiência estética e criativa, no limite, extásica: “embora a interactividade das imagens sintéticas sugira uma comunicabilidade ideal, sua existência, isto é, co-pertença do artista e do receptor a um solo que os torna aptos a receber e, portanto, a modificar e agir; dotando desta forma, a experiência estética do poder de interferência na praxis quotidiana e de uma dimensão normativa (…) encontra-se impedida pela própria evolução histórica (isto é pelo advento de uma sociedade guiada pela busca de uma identidade própria e não já não da universalidade como motivo das acções sociais e individuais.) ” (Lopes, Ruy, Sardinha, (1999)).

Um território é isso, não pode ser objectivamente localizado, mas está constituído em padrões de interacções através do qual o grupo ou horda sente uma certa segurança e estabilidade.

O fundo da nossa existência exprime essa procura. A presença da morte em nós. As maneiras de ver e sentir a morte são diferentes, a imagem que temos de nós que somos, o que pensamos que somos. Os medos visíveis. O medo difuso. O professor José Gil busca constantemente essa arqueologia do medo para além da política, na sociedade, nos comportamentos que invadem a vida particular ou devém a partir dum inconsciente. A língua limita a capacidade de escrita, a língua deforma, a língua permite mentalidades novas, hábitos, no sentido etnográfico, modifica.
No mesmo sentido psicológico se determina a concepção territorial como o seu ambiente social, o seu espaço vital, os seus hábitos nos quais a pessoa age e aos quais regressa. A marginalidade consciente e desejada. O desejo antes da consciente. Desejo do desejo. Antes da consciência do querer.

O impensado genealógico (de Marlene Zarader a Dolto, de Adler a Bakhtine). O conceito de duplo esmagamento: conceito do terror. Puro. A infantilização dos nossos modelos de leitura e “doutrina” de mitofilia colectiva. As separações. Os dramas irremediáveis. O conflito. O Mal como plano de irrealidade da vida. A vida é -- e tem de ser tragédia, júbilo e força. O mal: o não-acontecimento: a não-inscrição. A falta de conflito como verdade do conflito. Os desvios como uma ontologia do sentido normal. Daí brotam as pulsões de ódio como fundo recalcado. A aprendizagem da força do que convém e que não convém. Escolhemos os parceiros do amor assim pelo tipo de forças mortíferas, criação, inovação, vento, força, exemplo, osmose.
O silêncio, o ambiente, os olhares, o medo, o que faz parar. As críticas dos jornais e o elogio excessivo. O fechado: o sujeito que faz. As referências pessoais obsessivas ao mesmo que produz o sentido dos nomes que de forma poderosa organizam forças de subjectivação: de Abrunhosa à Graça Morais, de Figo a D. Sebastião, de Vasco da Gama a Amália Rodriges, ao peso sofismático da autocrítica que pode ainda assim ser uma limitação ao ego.

O aberto: a dessubjectivação pode desfazer o corpo do sujeito em nome do que se faz.
O queixume é duplo por nos faz afastar do que somos e nos amarra ao que de que nos afastamos. Essa mágoa da autoflagelação… As potências de vida: o conatus de Spinoza e o que a entrava. Depois dum diagnóstico tremendo se diagnostica, do que somos se somos, para além das fontes que podem dissolver pelo exorcismo e eliminar aquilo que se nomeia. Plasticidade como potência de devir outro. De nós enquanto eles - os portugueses. A ternura - um dos afectos mais centrais de excesso. O poder de poder perder a cabeça: que condiz com o que somos e fazemos (Vd. José Gil, Portugal, Hoje: o Medo de Existir, Relógio d'Água, 2005, Lisboa).

[1] Gil, José (1997), As Metamorfoses do Corpo, Editora Relógio de Água, Lisboa ver em esp pp. 178-180. Cf. a descrição psiché-soma ou impresença , espaço objectivo, espaço sem órgãos, espaço-charneira entre a alma e o corpo , inobjectivável, expressivo.
[2] Deleuze, Gilles e Guattari, Félix, Capitalisme et Schizophrénie 2 - Mille Plateaux, Ed. Minuit, Paris.