Friday, December 09, 2005

AA Miranda



Alberto Augusto Miranda e as Edições Tema

Um dia, Mário Cláudio quis apresentar-me um amigo, Alberto Augusto Miranda, em sua casa, se não me falha a memória, para colaborar no Letras & Letras. Lá fui. Desse primeiro encontro ficou-me um flash impressionista, pinceladas livres, luz e sombra. Um ar de clochard, que não seria mais que uma maneira de ser e de estar, livre, num respeito por si mesmo, que o mesmo quer dizer insubmisso aos outros que têm por prazer sádico modelarem todos dentro de padrões estabelecidos. A sua figura não me perturbou. Eu gosto de lidar com estas figuras, clochards ou não. Talvez um espécie de liberdade envergonhada que assim se manifesta, ou um sabor à minha infância, paredes meias com clochards. Conversámos. De quê? Sei lá agora! Já lá vão uns anos. A minha memória deve ser das mais pequenas da terra. E nem sequer passou pela minha cabeça, na altura, que hoje evocaria esse momento. A única coisa que me ficou, e é quanto basta, para mim, é que sé criou uma empatia que se transformaria numa sã amizade crescente.

O Alberto é transmontano. Tem uma costela cigana, no mínimo, de que se orgulha. Quem o conhece sabe que não poderia ser de outra maneira. Fez os seus estudos liceais em Vila Real. A licenciatura em letras em Lisboa, creio. Tirou também o curso superior de música. Das duas frentes, letras e música, tem feito carreira, à sua maneira, quando lhe apetece e como lhe apetece, sempre sem preocupações curriculares, ou de segurança económica. Ser livre, com todo o respeito pelos outros, sua preservação ecológica existencial, é o seu lema. Já esteve para fazer o mestrado, creio que empurrado por terceiros. Mas nada. Eu próprio achei que devia seguir uma carreira académica, dada a cultura e a inteligência que possui. Mas nada Não é homem de cátedra, pelo menos para já. Prefere um banco de pinho, junto dos seus amigos, dos que estão na sua onda. Ou no Porto ou em Lisboa. De actividade em actividade, seja das letras, seja da música, sem um vínculo permanente. Não suporta um nagalho a prender-lhe os braços, no que quer que seja. Talhado pare iniciativas, para o diferente, com base na cultura e no humano, tem tido várias, das quais aqui me proponho destacar Edições Tema, que exigem muita temeridade, quando os lugares ao sol das protecções já estão todos tomados. Vou recebendo com regularidade essas publicações, que leio, com mais ou menos atenção, conforme as circunstâncias, raras vezes da minha autoria. Mas há momentos para tudo e até para dizer «é agora». Peguei nos três últimos livros da colecção para a partir deles ficar com uma ideia mais correcta das Edições Tema, já com 16 títulos publicados.

El Futuro, de Alfredo Fressia, uruguaio, nascido em 48, poeta, crítico jornalista cultural, professor de Literatura e Francês em S. Paulo Brasil.

À medida que o fui lendo, ou melhor, pensando-o, foram-se escancarando as janelas para o mundo em que estou metido, vítima das leis estabelecidas, que em ai já anunciam a minha condenação, sem avistar um advogado de defesa. E O Inumano, de Jean-François Lyotard, e D'o Gosto e d'o Jeito, de Carlos Debrito, foram-se aproximando cada vez mais da minha leitura. A poesia tem destas coisas, toca, é intervenção, quando sai do sentir e não de uma programação intervencionista ideológica de empréstimo à sensibilidade.

Pensei fazer uma breve análise a esta obra, mas senti que ia destruir o efeito da leitura em mim, como quem toma um café amargo depois de uma fatia de doce, que se quer que permaneça na boca, no seu sabor. E, portanto, apetece-me dizer apenas, gostei; sem uma desconstrução em que o todo se anule pela dispersão. Critério que não deve servir de método, geralmente, mas que em certos casos não será reprovável, se levar o leitor à curiosidade de ler a obra, neste caso, o mais aconselhável. Gostei. Não quis ir mais além. Fiquei com S. Agostinho, se não me perguntarem, sei, se me perguntarem, não sei. Toda a gente sabe que há coisas para as quais não há palavras que as descrevam, porque só vendo-as e sentindo-as. É o caso de El Futuro / O Futuro. Uma poesia mordida por ameaças, que só o contacto directo apreende. Uma poesia que, na sua toada, me traz o Apocalipse de S. João, mais alegórico, já que o de Fressia é mais à base de símbolos, El Futuro é um carrasco que nos sujeita a uma conjugação reflexa.

A Oração de Filipa, de Rogério Carrola, de Tortosendo, Covilhã, nascido em 47, poeta e filósofo, com publicações desde 74.

A enunciação de um texto, a nível de exegese, oscila entre o «então olhai como se estivésseis presentes» e o conceptualismo mais fechado, ou a procura deliberada da ocultação. O crítico, qualquer que seja a sua gazua hermenêutica, vê-se sempre confrontado com um dos níveis possíveis, ou vários em simultâneo. Pode ir para além da intenção do autor, mas nunca para além da intenção da enunciação. Por outras palavras, pode ver tudo menos o que lá não está. A única coisa que lhe será permitida, fora destas malhas, será o eventual excurso, e este, não deve ser metido a martelo, como acontece com muitas citações, em que se nota com relativa facilidade a procura da adaptação do texto à citação e não o inverso.

A Oração de Filipa, um livro de poemas, apresenta-se no seu todo com um suporte narratológico que autoriza a criação de uma história a partir dos fragmentos concedidos. E assim teremos Colombo, o presumível descobridor da América, homem do Atlântico, como máscara onomástica do poeta, que terá passado pela Madeira como professor, de onde terá trazido da sua beleza natural e de um amor nela contraído as recordações que pressionaram a publicitação das suas emoções. No seu tratamento adivinha-se uma duplicidade que se procurou como possível defesa, de uma protecção a uma identidade, ou a duas. Ou simplesmente arte, a criação de um certo hermetismo, de pretensão literária? O «discurso» também se desenvolve num intercepcionismo narrativo/descritivo. De certo, há uma luminosidade que resplandece numa trama cinzenta, Filipa, que é idealiza pela saudade até a abstracção, ao «reembolso», um arquétipo, uma vez regressa ao Continente, o poeta, no fosso da ausência. A ausência, que aviva os traços das emoções, agora em câmara lenta, onde o real se superlativa. E assim terem uma história de sabor romântico, por se privilegiar a pessoalidade e o sentimento, sem cair no sentimentalismo febril, doentio, como convém, para que se aceite, agora.

O título foi extraído do conteúdo do último poema, o número 14. O poeta põe Filipa a evocar uma identidade, que supomos ser a do próprio poeta: «Tu, que iluminas a terra e as estrelas», «Tu, que aconchegas nos regaços todas as lágrimas quentes da ausência», «Tu, que ardes o mundo e desassossegas as tempestades», «Tu, que sabes de Deus o oculto e lhe iluminas a face», «Tu, que beijas todas as barcas e secas as luminosas e doces lágrimas/ dos deuses», «Tu, que não podes ter sequer a infinitamente pequena piedade de mim», «Tu, que sozinho não sofres as trevas, nem conheces o medo», «Tu, que lançaste duas réstias de luz para dentro da igreja em Lisboa», «Ó intensa luz», «Meu confidente rei», «O caminho eterno da beleza e do bem», «Tu, que diriges a harmonia das esferas e a febre dos cristais», «Tu, que conheces a lei da exacta eternidade, ó intensa luz branca». Este poema atinge uma metapessoalidade com ondulações épicas que simulam, que anulam, ou mascaram, um confeccionalismo que não se deseja declarado. Ou há uma tragédia, por detrás deste arroubo final?

Mulher a Facer Vento reúne sete poetas galegas, que vão dos 21 aos 76 anos. Cada uma delas com um bom curriculum. Todas elas a darem uma boa nota à actual poesia galega. São elas: Ana Romaní, Anxos Romeo, Emma Couceiro, Luísa Villalta, Luz Pozo Garza, Olga Novo e Yolanda Castaño.

Se estas poetas fazem a cobertura da poesia actual galega, poder-se-á dizer que a Galiza sintetiza o fundamental das preocupações da modernidade, o desassossego entre o Ser e a Existência, entre o real verdadeiro e a verdade real, poesia de denúncia e de dor, de cair de máscaras, de encontro com o Universo e com o corpo, de cristalizações temporais e espaciais, pois em cristais se depositaram alguns dos seus versos tocados por um certo hermetismo que amplia ecos, se se procura o seu sentido. Uma poesia que nos deixa uma frescura na boca, que, sendo de lamentação, se opõe à lágrima de uma inércia ou de um fatalismo metafísico. Um realismo e um romantismo que se anulam num corpus de pessoalidade vigilante e sensível.

Uma antologia bem encontrada, nas suas partes e no todo, logicamente matizado. Dada a quantidade de livros que se publicam em todo o mundo, da impossibilidade de os lermos, e da impossibilidade, por conseguinte, de visões de conjunto, de sinopses referenciais, planetárias, tão necessárias à arte em sua história, fazem falta antologias com o tratamento cuidado desta, desde que não se caia na segregação, numa xenofobia literária, ou num fundamentalismo de tradição.

Boa iniciativa do Alberto Augusto Miranda, esta das Edições Tema. Que outras tem e que serão tornadas públicas a seu tempo. Acções culturais. Livros publicados. Professor, a contra gosto, mas admirado e querido pelos alunos, o melhor critério de avaliação. O pianista, vestido a rigor, a contrastar com o clochard, a dizer-nos que o hábito não faz o monge. Em suma, um vagabundo da cultura, sem pouso certo, mas sempre com a luminosidade solar a escorrer da sua cabeleira.

Joaquim Matos, Julho de 1998

-------------------------------------------------------------------------------------

Alberto Augusto Miranda Lisboa, 1996

Não É Que Eu Saiba o Que Sei



Não é que eu saiba o que sei é o décimo título publicado de Alberto Augusto Miranda. De Outubro de um Século, romance dado à estampa em 1981 até ao presente livro, a produção artística de Alberto Augusto Miranda é marcada por uma significativa periodicidade e por uma não menos significativa abrangência nos géneros literários. Do manifesto, com o opúsculo O que se escreve – Quem escreve? – Subsídio para o Antigosto das palavras, passando pela dramaturgia com a peça Nojo, pela novela com Redond'Ilha (1993) e Portografias de 1995, pelo conto com Viagem à volta de Sabine em Oitenta Noites de 1989 e pela poesia com Miligramas, Linha de Linho e A Poesia de Yvone M., de 1994, a produção criativa de Alberto Augusto Miranda ocupa já no espaço cultural português um lugar assinalável que a crítica não pode de maneira nenhuma rodear.
O presente livro de Alberto Augusto Miranda é, permitam que o diga, um objecto paradoxal. Desde logo pela estranheza que o título suscita. A remetência à douta ignorância socrática aparece em toda a evidência. No entanto o apotegma socrático «só sei que nada sei» revela, ainda assim, uma sabedoria, negativa, é certo, mas em todo o caso sabedoria. Sabemos que a sabedoria socrática apresenta a ambiguidade de a um tempo se apresentar como ponto de partida de um saber que se quer autofundante e ao mesmo tempo ponto de chegada de um trabalho subversivo de desconstrução que tem por objecto o pretenso saber sofístico. É certo que a invocação de um demónio interior por parte de Sócrates levanta a fundada dúvida sobre a infundada sabedoria que o apotegma traduz e que a ironia permitiria recentrar na por demais celebrada humildade filosófica. O demónio interior socrático não é bem a negação dessa pretensão à objectividade racional que o conceito expressa? Artifício de comediante, diz-nos Nietzsche, este demónio interior resguarda o indivíduo da ex-posição publicitária que a universalidade do conceito implica. Delírio de solitário ou sopro divino, invenção ou exigência moral, o demónio socrático expressa o desejo de impenetrabilidade de que o trabalho da razão aprecia mascarar-se. O fascínio que o personagem Sócrates exerce não reside precisamente aqui, na ambiguidade desconcertante de um saber que se afirma, negando-se? Ora, é precisamente desta duplicidade, desta ambiguidade que ao negar-se se assume que os ensaios de Não é que eu saiba o que sei faz objecto e modo de abordagem. A duplicidade interpretativa entre a alternativa – que se saiba o que se sabe ou que não se saiba o que não se sabe, o título indica uma flutuação entre o que se afirma que se sabe e o seu desmentido. Há pois uma ironia que a denegação não anula, antes reforça. Diz o autor de Não é que eu saiba o que sei: «De tudo isto têm os sábios receio: é que nada há que não tenha duplo sinal; assim, um exemplo comezinho: o rasgão da camada de ozono (camada constituída por um povo de matriarcas) contamina tanto o nível de vida terrestre como o nível de vida firmamental. Assim, se Deus penetra agora muito mais na Terra (mesmo contra a Sua vontade) que não está preparada para receber todo o esplendor divino, também os homens penetram muito mais na ordem divina e o grande perigo é Deus ser contaminado pelos afectos humanos. Poderá ser, se Deus quiser, o fim do mundo» (p.15).
De entre os vários elementos que acompanham um texto e ajudam a explicá-lo – os chamados elementos paratextuais – contam-se o título, prefácios, recensões e subtítulos. O subtítulo de Não é que eu saiba o que sei podia muito justamente ser Ensaios. De que modo a invenção de Montaigne nos pode ajudar?
Sílvio Lima em Ensaio sobre a Essência do Ensaio aponta como características do ensaio a liberdade pessoal e o esforço constante pelo pensar original, no sentido de um pensar autónomo, representando uma tentativa, um tacteio. Para além de expressão literária o ensaio revela uma atitude crítica. Do pessoalismo sem método de Montaigne ao ensaio com método de Descartes um elemento comum os aproxima: em ambos se conta a história de um pensamento que se procura.
Ensaio é pois uma demanda, uma procura. Isto é, acerca do que se sabe que não se sabe o pensamento empreende uma busca, metódica, no caso de Descartes, subjectivamente errante no caso de Montaigne. Em qualquer dos casos o ensaiador experimenta, no sentido laboratorial do termo, argumentos. Trata-se, pois, de um diálogo em que o ensaiador argumenta e contra-argumenta, pergunta e responde. Não dizia Platão que o pensamento é um diálogo da alma consigo mesma? Pensar, eis o que o pensar nem sempre tem por objecto. Neste último livro de Alberto Augusto Miranda o pensar assume a sua duplicidade originária, a sua ambiguidade estruturante. Pode ler-se na página 84: «Se a reescrita já foi executada, o movimento de re-criação é, afinal, um movimento nulo – paradoxo contrastante com a inércia de um dado movimento – e assaz mortífero. Só a criação, ou seja: a escrita de uma outra escrita fundadora se pode constituir em fonte, em origem. É é muitas vezes o que se sauda na morte, na cor definitiva: não poder ser reescrevível». Eis o que me intriga na Odisseia de Homero: nada diz, nem indica, sobre o quotidiano de Ulisses após o regresso a Ítaca. Hipótese plausível, mas que tomo como certa: nada há a dizer. Solução optimista: passados uns dias Ulisses fez-se de novo ao mar: não era já aquela a Ítaca originária.
Se necessário fosse entroncar esta atitude num dizente filosófico encontrá-lo-iamos em Merleau-Ponty quando a propósito do lugar da Filosofia o autor do Elogio da Filosofia afirma que filosofar é o transporte do saber para a ignorância, da ignorância para o saber e o intervalo entre eles. Alberto Augusto Miranda di-lo de outra maneira. No ensaio intitulado «Do Direito à Resposta» pode ler-se: «os esforços devem coincidir entre o primitivo e o sofisticado para que a resposta seja superfície. Porque o erro fatal é querermos compreender a resposta quando a nossa compreensão é já, em si, um exercício muito limitado que desencadeia muitas perguntas que solicitam sólidas respostas mas não conduzem à Resposta» (p.71) Entenda-se: não é a Resposta logocraticamente sediada que aqui é problema. Alberto Augusto Miranda não demonstra: argumenta. Ainda o autor de Não é que eu saiba o que sei: «Porque a Resposta não se filia no emotivo: não se sente e, portanto, não se pode compreender; tão pouco se resume ao racional para que a notável cientificidade a possa entender e experienciar. É verdade que a Resposta é conjugada também por essas duas dimensões mas estratifica-se no para-onírico descompartimentado, sem cabimento de controlo, aberto e totalmente receptivo» (p.71).
A razão e a paixão, o conceito e a fantasia, não isto ou aquilo, antes a contaminação, a flutuação dúplice entre a racionalidade objectivante e a argumentação persuasiva. O carácter paradoxal destes ensaios reside pois na oscilação interpretativa a que permanentemente estamos sujeitos. Assim, se por um lado o jogo vocabular lúdico-ficcional desperta no leitor uma fruição quase sensitiva, já o carácter argumentativo de boa
parte dos ensaios aponta claramente para uma dimensão de ordem intelectual, racionalizante. A este propósito, chamo a atenção para o ensaio com o título A qualidade do Ser na Perseguição à Certeza onde Alberto Augusto Miranda literalmente persegue esse par categorial – «indícios maniqueus», na expressão do autor – que atravessa toda a história da teoria do conhecimento: a certeza e a dúvida.
Dizia Jorge de Sena que o ensaio «é, ou deve ser, anti-didáctico – contribuir discretamente para a confusão dos espíritos». Pensamos que Não é que eu saiba o que sei cumpre plenamente este objectivo.
Fernando Martinho Guimarães, 1999

------------------------------------------------------------------------------------------

Vento
Alberto Augusto Miranda
Depart. Lit. da Soc. Guilherme CossoulLisboa, 1998

Alberto Augusto Miranda, já com uma vasta obra publicada, não mediático nos ecrãs pagos pelo contribuinte, insubmisso a grupos e instituições, a ordens e horários, a confecções de estar e ser, fazendo, e só, o que lhe dá na real gana, dirige actualmente as edições TEMA, já com mais de duas dezenas de títulos, na sua maior parte de qualidade, de autores nacionais e estrangeiros. Por outras andanças tem ampliado o seu currículo, sem nisso pensar, pois move-o o prazer que desfruta das coisas em que se mete. Ora é poeta, ora é ficcionista, ora é pianista, ora é crítico e ensaísta , ora é docente, ora é actor, ora é simplesmente exímio conversador. Sempre indiferente às portas que poderiam ser abertas pelo seu Curso Superior de Literaturas Modernas, pelo seu Curso Superior do Conservatório de Música, pela sua capacidade de trabalho, pela sua inteligência apurada e isenta, pela sua bem assimilada cultura. Alberto Augusto Miranda é livre como o vento, um romântico, não na forma, nem no sentimentalismo, mas nos sentimentos e na liberdade insubmissa, no arrebatamento nos nacos de felicidade que procura, porque eles são a vida.
Alberto Augusto Miranda é como o vento, imprevisível para os meteorologistas de ciência de bem governar a toda a sela, mas previsível para quem com ele participa do voo, do sonho, da poesia, do sorriso aberto, indiferente às lâminas dos preconceitos, ao cordame do barco que nos leva. E Vento é o título da obra que nos picou para uma breve referência. Vento tem como subtítulo " Histórias para a Inocência ", não para as crianças. Eles não sonham nem sabem que a inocência não é apanágio das crianças, porque a confundem com um pré-perfil social anterior à aprendizagem bastarda dos alicerces de uma sociedade bem organizada para melhor ser governada segundo os interesses em causa. Inocência, para o autor, tem a ver com o estado puro e natural imanente no barro humano, uma espécie de luz no fundo do túnel, que ilumina os obstruídos acessos ao paraíso. Onde a linguagem corre livre, sem fiscais, onde querer e imaginação se confundem num espaço telúrico e cósmico, onde os actos são imediatos sem uma forca vigilante. Estas observações se exigem, para compreender a intentio auctoris. Uma primeira leitura, para cheirar, apressada, costume enraizado nos especialistas da matéria, levará a concluir que se trata de histórias banais, simplistas, transparentes, ao nível das crianças. Mas uma leitura reflexiva dá-nos uma outra dimensão, mais profunda no seu tecido semântico, mais rica na sua elaboração estética.
A primeira história, na nossa terminologia estória, tem por titulo Vento, precisamente o escolhido para o volume. No Vento, o autor esmalta a leveza da vida ( veado e gazela ), em tons que são de alma expurgada da materialidade corrosiva. Pressente-se a liberdade do sonhar, a eleição do espírito que para si requer um nome, beleza. O melhor do lado humano aqui se privilegia, com louvor, com um idealismo que não se conforma com a opressão do consumismo a que se condenou a sociedade.
Segue-se A Fabulosa descoberta da Néné, uma pequena estória na linha das primeiras correspondências sensoriais, exercício já esquecido pelo adulto, mas que ilustra, com realismo, as primeiras pedras da construção da existência. Nada mais. Mas mais se pode ver, se " bosta " for tomada por metáfora da vida.
De Misturas se constrói a terceira com pessoas e técnicas de que resulta o humor e a sátira social. As pessoas não são pessoas, são mascarados, nos seus hábitos sociais, cada um optando pela pele que mais lhe agrada, sem ponta de personalidade que dê um toque de personagem modelada. Um videoterapeuta acaba por elevar-se a protagonista, dirigindo a sua orquestra de acéfalos, a família, com a sua batuta. Onde se nega o laço de família, porque a pele de cada um se sobrepõe à comunhão.
Em jeito de parábola é encenado O Exílio dos gatos, que são silêncios, filhos da Lua, versus silêncios dos homens. Oriundos da luz, dela desgarrados, como a Patusca, a gata velhota que se fartou do silêncio da mãe Lua. Um edenismo transparece em breves recortes nesta breve estória.
E também em jeito de parábola se segue A solidariedade dos olhos, estória trabalhada com órgãos do corpo, que nos faz lembrar a parábola romana dos membros e do estômago, na sua confecção. Registamos a imaginação e o anedótico de alguma brejeirice que se anula num final de intenção didáctica, a solidariedade. Os sentidos e os intestinos são as personagens que o autor para aqui elegeu, como intérpretes de sentimentos e de opiniões.
E passamos a A serigaita e o velho com uma crítica implícita à pintura de manchas e que termina com um toque de magia. O velho pintor, criativo, já distante do real que o cerca, perdido na sua subjectividade, já alienado dos contornos e dos sabores das coisas, é confrontado com a menina, a serigaita , para quem a natureza é a que se projecta nos sentidos, porque a outra, a subjectiva, ainda não a descobriu.
Em sétimo lugar vem A princesa do parque, que ilustra dois sentimentos opostos na criança , o do isolamento, a solidão infantil por falta de crianças para brincar, e o da arrogância ingénua, imaginar-se grande, a princesa de um parque, em cima de um pedestal. Realça-se a imaginação e a liberdade da criança que cria o seu próprio mundo, a sua própria felicidade, porque a vida ainda é sinónimo de ilusão, de devaneio, de quimera.
E damos com o título O condorcéu, tão singelo quanto belo pela sua lição de fazer a felicidade com as poucas coisas que estão ao nosso alcance, no caso presente todos darem simplesmente as mãos à volta de uma árvore, o condorcéu, nome que não vem nos dicionários, porque nos dicionários não aparece a felicidade, apenas o seu nome, sem forma e sem conteúdo.
E temos então A voz de Marta . Do mito, da natureza e do homem se confecciona esta estória que permanece no limiar da narrativa, quase sem estória, porque o espaço poético dela se apodera, em levezas, em sentimentos, em harmonias.
Para terminar com A floresta é um mundo, que se pode considerar a chave técnica das estórias. As correspondências do simbolismo, a vinculação de tudo ao Todo, estão na base das "liberdades" literárias do livro que se apresenta. Que sobretudo é poema, meteorito, de sensibilidades, que desliza através da floresta que habitamos e de que fazemos parte.
Um livro de denúncias e de favos onde a vida ainda reluz.
Acompanhado de ilustrações esteticamente personalizadas, com qualidade, que merecem a sua referência pela confecção narrativa inalienável dos textos, tornando-as interpretativas, co-autoras, com rigorosa fidelidade. A merecer o registo dos seus autores: Ana Pinto (Lisboa) , António Pinto (Lisboa) , Anxo Pastor (Galiza) , Eva de Boitselier (Bélgica), José Alexandre (Espinho) , Paula Espiñeiro (Galiza) , Raúl Sosa (Uruguay) .

Joaquim Matos, Pedrouços, 7 de Setembro de 1999

-----------------------------------------------------------------------------------------

SEMÂNTICA DO OLHAR
Semântica do olhar


1 Como se as mãos para melhor se darem fossem senda Abríamos nos olhos o lugar onde deixáramos a noite Procura da qualidade do silêncio, da semântica da safira Onde o sol era fissura e anomalia, uma mentira Estranho, muito estranho, era o barulho do dia E outras ignoradas estranhezas pendiam questionantes Da força do destino, último sinal da existência

2Nenhuma bioquímica emergia agora do namoro Que houvesse, que há? assim se quer saber Em vinte outonos de assombro pelas paradas pernas À beira-abismo, doce tentação de continuar Como se chamam as ninfas duêndicas do trabalho? Um autocarro de lama nos estonteava a quietude E a garimpa do ponto de contacto era um nada Legítimo e acrescentado pela nossa presença em si

3A realidade torna-se medonha, coruscante e estentórea Passam, sem pausas, as imagens de outra dimensão Mas logo a combustão dos contornos nos faz mistura Mais não somos que um texto privado da particular unidade Com que os amores encantados se fazem distintos E o virtuosismo dos animais seráficos é só lembrança Que um vinho confraternal recorda no imperfeito Volvendo os suspiros ao lugar dos gritos imperecíveis

4De repente uma chuva pudica permitiu algumas claridades Em baile de livre fêmea em cima dos tijolos Sazonando as seivas, vento embarcando as sementes Sem rugidos, espelho nosso de feras cheirando Os aromas do habitat perdido no momento da visita No salto reconhecido derradeiro de quem já tudo deu.

5A ronda diurna de perfumes apertados em cimento Expôs as frágeis mãos ao domínio racional: ninguém Assim como nós éramos, pôde sequer pela húmida dança Ser tecido de andorinha, era o tempo das máscaras E todo o desenho era vago no seu rigor, na sua voz Chamante das cores e da surpresa, mas presa Era a humana condição de desafios mortos Algemas de um idioma de comunicação falho

6Dissemos perdidas as guerreiras túnicas Quando o após nos estranhou de estarmos juntos Mesmo depois de destruirmos a eternidade Em nossos endiabramentos de omissão e ausência Agora nos bolsos nossas mãos apagaram a luz Não há lume neste escuro que da noite não é Chama-se a violeta para tocar a viagem para dois lados

Semântica do Olhar, Lisboa, 1997

Organon das profecias

1Do século em seus espaços e tempos eu via Para lá do eixo funcional dos limites Animal de quinta dimensão mantido Ao choro unido sem quebra, cabra Indomável palavra em figura perpassando Sua digna continuada emoção. Subia a hortícola saia para me garantir Fazedora do esquecido vento em cada pulo

2Passeava a cegueira pelo meu sorriso de fé Eu hostiava as sombras para as contentar de luz E tinha tanta verdade em meus olhos esplendida Que já nada temia do ameaçador espelho Afinal meu consolo, meu feito ser. Assim o levo nos meus bolsos e peitilhos Como documento de firmeza sempre preparado A saltar às conversas desditosas e às dúvidas A mim própria saltando. Mais do que a prece O espelho, o construído espelho, inquebrável Salvação, a minha alegria do divino.

3Procurava os perdidos de nome e uma traviata Reconhecidos de mim nas águas dos extremos Arca de Noé, eu seria aparição no desespero Até no esquecido desespero de uma apática entrega Ao tridentino dono, industrial da lavoura dos nervos. Mais e melhor entrega eu lhes era dizer na boca O amor que nenhum lupanário conhece à vontade De Deus corpo no corpo do corpo sou e aos homens De membro em riste apenas os cerco de imagens As coxas, os seios, o sexo, deitados em mãos de nuvem E chuva do futuro em cada abandonante do presente O ósculo sagrado, o beijo da comunhão.

4Não há verbo nacarado que consiga O aroma dos meus braços voantes e abertos À recolha da solidão e do desastre, os meninos Todos para mim, explosão de afecto em minha ara. Não há verbo, precisamos do silêncio para dizer Precisamos de sentir para falar em cada dedo Sulcando o meu ventre pelo escuro da origem Viajando até ao luar dos olhos compreendidos Sinais de todos os músculos e de outras forças De que me faço e me fazem embarcação Dos nautas que não desistiram do infinito.

5Não faço todas estas coisas por Ele ou para Ele Em soma vos quero dizer: Ele não é meu Chulo! É por mim que tudo faço até na renúncia De omitir à cidade e a mim mesma omitir A minha sensualidade que julgo ser muita mas não quero Saber, tenho medo, tenho medo, tenho muito medo Da sua Revelação, não aguentaria a dupla fatalidade: Ser agnóstica sensual ou vulgar ninfeta Incapaz de ser única, tal a Vida seria. Tenho medo, tenho medo, tenho muito medo De a mim própria me nomear pássaro e não voar. Ó mãe, ó meu resíduo: é a parte do pai que fala.

6Por inteiro, sem parábolas me prontifico A lavar-me de manchas para nos outros as lavar. Um primeiro quente me acaricia o rosto Na missão de ligar as almas ao Supremo Ao inacreditável, ao impossível, a todos os signos Prefixados de negação: sou-vos afirmativa, De mim corre e escorre tudo o que é meu Fonte vossa, nosso resultado, espiral Penteando os cabelos dos acessos difíceis Meu máximo gosto, minha máxima razão é Minha máxima culpa, meu máximo ser Clareando em perigo uma pequenina célula Locatária do escuro e meu máximo triunfo.

7Algures, em retiro, sentava-me no areal E soprava na flauta de bisel edulcorantes sons Como virtuosa hameline seduzindo Pequenas multidões prontas de brancura atrás De mim, oásis em regaço sem miragem Hamsters abandonando o jogo da caça Alegres do Sol, primevas claridades Agora recuperadas na água baptismal Todo o passado apagando por esta tigela de alumínio Com que os faço nascer, lhes confiro um nome E pelo livre arbítrio os torno diferentes Em seus corpos inscrevendo Uma oração comum no discurso da semelhança.

8Talvez seja assustador o meu extra-vento O tranquilo golpe da minha mirada O desafio de desafiar sem combate expresso Porque todos têm medo, muito medo De abandonar o refúgio do seu caos E saberem nas narinas o que lhes era sabido: O lado mordente da natureza de cada um, O lugar de árvore e fruto que era o seu O céu que queriam e a que nunca chegaram Por muito exercício e conquista em jejum Seus metaquímicos transes pudessem ser A palavra iniciática do profeta.

9Eu de vento-rindo meu desmusculado segredo Pura e transparente mão do milagre ou Outro membro vos unte esses alimentos Onde cozinhais em transmitida receita Vosso mito por salgar Que hoje aprendi no organon das profecias Ser do profeta irredutível dever Falar ao ouvido das setas Em olhos reviravoltados.

Semântica do Olhar, Lisboa, 1997

Saída mulher a fazer vento espantada da falta do mesmo assim não se pranteando em ligeiros indícios com a mão lenta e um pé semovente um pouco à frente do que antes ter uma fé em suave detérmino devagar abandonando abandonos finíssima brisa nascendo em si sobrecalando rugidos, pancadas em rumor, gritos por detrás de onde a vemos sair agora em todos os lados o luar se faz divino sopro.

Semântica do Olhar, Lisboa, 1997


LINHA DE LINHOContingente geral, ala progresso Contingente geral, ala progresso designo-te vencedor: será feita a tua vontade. contudo sem binómio: apenas tu farás a tua vontade. Quanto baste! Escorrer a montanha, sonhar o purismo, incensar de marginalidade a flauta de Pan no descanso do cão, os cordeirinhos desobrigados. Quanto paste!Linha de Linho, Vila Real, 1983


O que eu desejava, realmente, era ir, esta noite, morrer à tua porta. Mas mora lá tanta gente que tu podias pensar que eu não tinha morrido à tua porta. Se ao menos o teu quarto tivesse uma varanda. Ou se praticasse a técnica da transferência e vivesse as imagens da substituição… ou se sinceramente amasse a minha analista. Não sublimo os desejos por incapacidade. E recalco mais este. Não posso, como desejava realmente, ir morrer à tua porta. Fico a gemer. Se, ao menos, tu morresses!

Linha de Linho, Vila Real, 1983

A POESIA DE YVONNE M.fenícios o que de repente nos espanta a sensibilidade é a ausência do longe, a maneira fácil como inventamos e apagamos a distância. De tal modo aquela mancha branca aproximando-se como bando de fenícios devolvidos ao seu retalho de vidro onde as nossas imagens se cruzam perante a perplexidade do mito sem recurso para novo espaço exilado dos cristais onde os humanos brincam e se bastam.

A Poesia de Yvonne M., Alentejo, 1988

mas o que se me implora é o vento mas que esqueci; não por ser meu mas por eu o poder fazer chegar mas aos cabelos de quem o conheceu mas por mediunidade de corpos, embaraços, expulsões, mas de mim ninguém necessita mas apenas do eolismo que me sai das extremidades ou da boca mas pudessem calar-me e ficarem com o vento mas sem saberem que eu próprio queria o vento mas sem mim.

A Poesia de Yvonne M., Alentejo, 1988

vozes oiço tantas vozes e nenhuma oiço já que cada uma se multiplica e eu não sei de cada voz senão a soma que é a minha voz conter tantas vozes e minha voz não ser a não ser quando disto fala por refreio ao que se escuta hoje dos movimentos de ontem e parecer ser justo diferenciar um quem que voz é mas torna a ser desconhecida sempre que a voz procurada denuncia à voz que procura a sua propriedade.

A Poesia de Yvonne M., Alentejo, 1988