Thursday, April 17, 2008
Moçâmedes, meu amor
Andre-Moshe Pereira
Esta chuva de ti/ deixa cair pedaços de tempo/ pedaços de infinito/ pedaços de nós mesmos// é por isso que estamos/ sem casa nem memória?/ juntos no pensar/ como corpos ao Sol?
Juan Gelman, Dibaxu, XXV, p. 69
Durante vinte e cinco anos estive calado e não falei de ti; estiveste dentro de mim escondida cidade linda, com os casuarineiros, a praia das conchas, a praia azul e o deserto infinito. E esse deserto que infinitamente redobra o poder de Hashem, bendito seja.
A mente tem disto. Vou tecendo comentários relativos a um tema só meu, mas ainda assim colectivo, dum grupo de vivências irreversível e de relativo interesse público, e esse interesse raramente tem a ver com a curiosidade como diz Niceto Blásquez mas apenas coma nostalgia. De repente invade-nos a infância através das imagens e das vozes. Do canto do patrício angolano Bonga. A história que o tempo levou do Zé Kilengue. É o homem do saco, o homem sem cabeça. Um bicho-homem que não dá para espantar. E do homem anódino que nos atirava pedras quando cruzávamos os dedos indicador e médio sobre a outra mão e sobre os mesmos dedos figurando a s grades da cadeia e lhos mostrávamos.
A praia dos arcos e a baía e os amigos perdidos para sempre. E escola 56 onde formei uma parte da minha educação já serôdia embora muito jovem, além das aulas particulares numa explicadora do diabo. Que me batia quando errava. E assim fui errando muito sem saber como acertar. Porque me batia quando errava e depois por não ter acertado à primeira. E a seguir se preparava para arrimar a palmatória aos erros sequenciais. Hoje, quando leio as Conjecturas e Refutações de Karl R. Popper vejo como a teoria do teste e erro pode em alguns casos ser quase fatal, apesar de científica e com a projecção que o tempo dá sobre estes acidentes.
Moçâmedes da língua inglesa e da professora que perdeu a virgindade no ballet e do professor de ginástica especial que se esquecia de nós e se empenhava num amor luxurioso — como se não existíssemos — com uma colega nossa mais velha na EICIDH. Mais tarde o LAAT, aliás Liceu Nacional de Moçâmedes e a minha expulsão por dois dias das aulas por estar a fazer um desenho na prancheta nas aulas de inglês; atirou-se a mim uma gata rabugenta duma professora mulher do Arens, corredor de automóveis, em torno do Forte de D. Fernando; ela marcou-me a cara por oito dias com as suas centenas de argolas em torno do pulso e o currículo de bom aluno, um verdadeiro artista, réprobo da língua inglesa, foi suspenso por dois dias em que passei em casa com impedimento de entrar no perímetro escolar. O reitor, madeirense nem me ouviu nas impossíveis alegações de artista. Acordou de imediato na suspensão das aulas. A única até hoje. Apesar das tentativas mais inabilidosas e néscias de outros confrades do medeirense.
Moçâmedes da minha burra, da minha bicicleta que até hoje abandonei como se me afastasse do único veículo que soubera conduzir como vejo os miúdos-homens hoje a conduzirem as suas máquinas de luxo quais Maseratti e Chrysler e Ferrari para chegarem onde eu chegava: porque tudo era perto nesse Paraíso da Welwitchia mirabilis. E do morro maluco a caminho de Sá da Bandeira – Lubango, que ora aparecia de um lado e logo pelas circunvoluções da inóspita estrada do outro lado e do nada surgiam ao longo da estrada as tribos mucubais em estado de quase nudez total, como o ambiente em volta onde desfilava um comboio do minério de Cassinga com centenas de composições. Parecia um mostrengo pré-histórico. E ao seu entorno uma vegetação savanal e umas rochas com forma antrópica, em delineamentos que ora pareciam cetáceos pedidos duma era antiquíssima do terciário ora se viam inscritos em algumas grutas os restos de ossatura de peixes quando o mar tudo envolvia no começo do Mundo como enuncia o Bereshit (Génesis) da nossa sagrada Torah! Um facto importante irrecusável que oferece a terra, são os despojos fósseis de animais e vegetais, dentro das diferentes camadas, até nas mais duras pedras. A existência de tais seres é anterior a formação das aludidas pedras. Entre os despojos de vegetais e animais, alguns mostram-se penetrados de matérias calcárias que os transformaram em pedras, alguns apresentam a dureza do mármore. São as petrificações propriamente ditas. São não raro, esqueletos completos.
As caínes e num mesmo palco as raparigas negras aborígenes e lindas com as suas trancinhas filigrânicas a ostentarem o louvor duma natureza matricial por revelar.
Por vezes recordo o rumor das ondas quando à noite parava junto à baía em dia de nevoeiro. Uma névoa fresca em dias sempre quentes. Como o suco das múcuas e as mãos estendidas ao céu dos imbondeiros gigantescos, ferozes na ânsia de se fazerem notar no interím duma força majestosa da natura naturata ao modo espinozano face ao firmamento sempre azul.
Moçâmedes, praia das miragens, saco do Giraul, Torre do Tombo, o elefantezinho ainda sem dentes meu amigo confidente das horas da angústia infantil, Caitô, o elefante do parque. O jardim infantil; o coração a batucar e o assobio malandro. O cutucar das cascas de nozes no oceano, na baía; as baronas nossas donas ainda por nascer; de repente sou assim um estranho de mim e a paixão insufla de sangue o meu peito e a emoção constrange-me as palavras. E os antílopes ao lado (na imaginação) e as palancas miríficas e as miragens das estradas de produção humana, inacabáveis. E essas flores impossíveis que luzem com cor púrpura a partir dos cactos suculentos dum deserto que é prolongamento do Kalahaari. Os planaltos a norte a partir do Namibe e na Huíla com a obra colossal da autoria do engenheiro Edgar Cardoso que concebeu o percurso da extraordinária estrada projectada no serpentear duma altitude colossal e que nos leva, através da imponente serra da Leba, da cidade do Lubango até ao deserto do Kalahaari, Moçâmedes e ao mar. Dentre a mistura de areia e água surgem centenas de espécies que florescem em conjunto com leões, elefantes, hienas, mabecos, búfalos, hipopótamos e crocodilos. Uma grande variedade de pequenos animais que podem também ser encontrados como o lobo-do-mar o ganso selvagem, o macaco de muitos tipos de antílopes, ali e além.
A minha primeira arrufadela amorosa com a Lola; nunca mais soube seu nome completo e da sua figura diafrénica e estuante. Magicamente apareceu e desapareceu; ganhava brilho na rua e tínhamos 9 ou 10 anos. E os meus itinerários lambruscos pelo deserto procurando o Sul e o sal. Porto Alexandre (Tombwa) das calemas e do peixe e dos temíveis mabecos.
Em termos gerais como diz um economista da nossa praça: na realidade, existe em Portugal um conhecimento sobre África, ao menos no domínio das ciências agronómicas, que teria sido precioso para o desenvolvimento pós-colonial, se este tivesse sido possível em Angola, Moçambique ou Guiné Bissau, o que infelizmente não foi, até à data. O mais grave, porventura, é que grande parte desse conhecimento não está codificado, não é transmissível, isto é, pertence à experiência pessoal de alguns e não irá perdurar para além das suas vidas. Com esta que aqui se reescreve.
Esta chuva de ti/ deixa cair pedaços de tempo/ pedaços de infinito/ pedaços de nós mesmos// é por isso que estamos/ sem casa nem memória?/ juntos no pensar/ como corpos ao Sol?
Juan Gelman, Dibaxu, XXV, p. 69
Durante vinte e cinco anos estive calado e não falei de ti; estiveste dentro de mim escondida cidade linda, com os casuarineiros, a praia das conchas, a praia azul e o deserto infinito. E esse deserto que infinitamente redobra o poder de Hashem, bendito seja.
A mente tem disto. Vou tecendo comentários relativos a um tema só meu, mas ainda assim colectivo, dum grupo de vivências irreversível e de relativo interesse público, e esse interesse raramente tem a ver com a curiosidade como diz Niceto Blásquez mas apenas coma nostalgia. De repente invade-nos a infância através das imagens e das vozes. Do canto do patrício angolano Bonga. A história que o tempo levou do Zé Kilengue. É o homem do saco, o homem sem cabeça. Um bicho-homem que não dá para espantar. E do homem anódino que nos atirava pedras quando cruzávamos os dedos indicador e médio sobre a outra mão e sobre os mesmos dedos figurando a s grades da cadeia e lhos mostrávamos.
A praia dos arcos e a baía e os amigos perdidos para sempre. E escola 56 onde formei uma parte da minha educação já serôdia embora muito jovem, além das aulas particulares numa explicadora do diabo. Que me batia quando errava. E assim fui errando muito sem saber como acertar. Porque me batia quando errava e depois por não ter acertado à primeira. E a seguir se preparava para arrimar a palmatória aos erros sequenciais. Hoje, quando leio as Conjecturas e Refutações de Karl R. Popper vejo como a teoria do teste e erro pode em alguns casos ser quase fatal, apesar de científica e com a projecção que o tempo dá sobre estes acidentes.
Moçâmedes da língua inglesa e da professora que perdeu a virgindade no ballet e do professor de ginástica especial que se esquecia de nós e se empenhava num amor luxurioso — como se não existíssemos — com uma colega nossa mais velha na EICIDH. Mais tarde o LAAT, aliás Liceu Nacional de Moçâmedes e a minha expulsão por dois dias das aulas por estar a fazer um desenho na prancheta nas aulas de inglês; atirou-se a mim uma gata rabugenta duma professora mulher do Arens, corredor de automóveis, em torno do Forte de D. Fernando; ela marcou-me a cara por oito dias com as suas centenas de argolas em torno do pulso e o currículo de bom aluno, um verdadeiro artista, réprobo da língua inglesa, foi suspenso por dois dias em que passei em casa com impedimento de entrar no perímetro escolar. O reitor, madeirense nem me ouviu nas impossíveis alegações de artista. Acordou de imediato na suspensão das aulas. A única até hoje. Apesar das tentativas mais inabilidosas e néscias de outros confrades do medeirense.
Moçâmedes da minha burra, da minha bicicleta que até hoje abandonei como se me afastasse do único veículo que soubera conduzir como vejo os miúdos-homens hoje a conduzirem as suas máquinas de luxo quais Maseratti e Chrysler e Ferrari para chegarem onde eu chegava: porque tudo era perto nesse Paraíso da Welwitchia mirabilis. E do morro maluco a caminho de Sá da Bandeira – Lubango, que ora aparecia de um lado e logo pelas circunvoluções da inóspita estrada do outro lado e do nada surgiam ao longo da estrada as tribos mucubais em estado de quase nudez total, como o ambiente em volta onde desfilava um comboio do minério de Cassinga com centenas de composições. Parecia um mostrengo pré-histórico. E ao seu entorno uma vegetação savanal e umas rochas com forma antrópica, em delineamentos que ora pareciam cetáceos pedidos duma era antiquíssima do terciário ora se viam inscritos em algumas grutas os restos de ossatura de peixes quando o mar tudo envolvia no começo do Mundo como enuncia o Bereshit (Génesis) da nossa sagrada Torah! Um facto importante irrecusável que oferece a terra, são os despojos fósseis de animais e vegetais, dentro das diferentes camadas, até nas mais duras pedras. A existência de tais seres é anterior a formação das aludidas pedras. Entre os despojos de vegetais e animais, alguns mostram-se penetrados de matérias calcárias que os transformaram em pedras, alguns apresentam a dureza do mármore. São as petrificações propriamente ditas. São não raro, esqueletos completos.
As caínes e num mesmo palco as raparigas negras aborígenes e lindas com as suas trancinhas filigrânicas a ostentarem o louvor duma natureza matricial por revelar.
Por vezes recordo o rumor das ondas quando à noite parava junto à baía em dia de nevoeiro. Uma névoa fresca em dias sempre quentes. Como o suco das múcuas e as mãos estendidas ao céu dos imbondeiros gigantescos, ferozes na ânsia de se fazerem notar no interím duma força majestosa da natura naturata ao modo espinozano face ao firmamento sempre azul.
Moçâmedes, praia das miragens, saco do Giraul, Torre do Tombo, o elefantezinho ainda sem dentes meu amigo confidente das horas da angústia infantil, Caitô, o elefante do parque. O jardim infantil; o coração a batucar e o assobio malandro. O cutucar das cascas de nozes no oceano, na baía; as baronas nossas donas ainda por nascer; de repente sou assim um estranho de mim e a paixão insufla de sangue o meu peito e a emoção constrange-me as palavras. E os antílopes ao lado (na imaginação) e as palancas miríficas e as miragens das estradas de produção humana, inacabáveis. E essas flores impossíveis que luzem com cor púrpura a partir dos cactos suculentos dum deserto que é prolongamento do Kalahaari. Os planaltos a norte a partir do Namibe e na Huíla com a obra colossal da autoria do engenheiro Edgar Cardoso que concebeu o percurso da extraordinária estrada projectada no serpentear duma altitude colossal e que nos leva, através da imponente serra da Leba, da cidade do Lubango até ao deserto do Kalahaari, Moçâmedes e ao mar. Dentre a mistura de areia e água surgem centenas de espécies que florescem em conjunto com leões, elefantes, hienas, mabecos, búfalos, hipopótamos e crocodilos. Uma grande variedade de pequenos animais que podem também ser encontrados como o lobo-do-mar o ganso selvagem, o macaco de muitos tipos de antílopes, ali e além.
A minha primeira arrufadela amorosa com a Lola; nunca mais soube seu nome completo e da sua figura diafrénica e estuante. Magicamente apareceu e desapareceu; ganhava brilho na rua e tínhamos 9 ou 10 anos. E os meus itinerários lambruscos pelo deserto procurando o Sul e o sal. Porto Alexandre (Tombwa) das calemas e do peixe e dos temíveis mabecos.
Em termos gerais como diz um economista da nossa praça: na realidade, existe em Portugal um conhecimento sobre África, ao menos no domínio das ciências agronómicas, que teria sido precioso para o desenvolvimento pós-colonial, se este tivesse sido possível em Angola, Moçambique ou Guiné Bissau, o que infelizmente não foi, até à data. O mais grave, porventura, é que grande parte desse conhecimento não está codificado, não é transmissível, isto é, pertence à experiência pessoal de alguns e não irá perdurar para além das suas vidas. Com esta que aqui se reescreve.