Thursday, April 17, 2008

A experiência humana da lucidez

Andre-Moshe Pereira
Presidente Kehillah Or Ahayim

XIII-Eres mi única avla/ no sé tu nombri (dibaxu)
A Juan Gelman, a Andityas Moura


A psicanálise trata de um sentido da experiência humana. Integrada no seu particularismo a psicanálise é resolutamente imanente a um aspecto concreto da experiência. Na psicanálise sucedem-se ou justapõem-se sem qualquer ordem aparente, modos diversos de pensar. Aí se nota desde logo uma linha biológica que a orienta para a descrição de uma génese, a dos estádios do desenvolvimento afectivo. Mas tal descrição é atravessada por um alcance de tipo experimental que a contradiz até um certo ponto.Dum lado a perspectiva geométrica parece animar a teoria dos complexos e orientá-la talvez para uma vasta combinatória de tendências frustradas que se afrontam e transmutam segundo regras de uma alquimia estrita.


Quanto ao pensamento classificatório, ele está presente quando o psicanalista toma apoio sobre a nosografia psiquiátrica e a remodela. Em especial esse alcance e perda é visível na tipologia de Carl Jung.Ao contrário das abordagens psicotécnicas mais tradicionais que tomam emprestadas os métodos de quantificação à biometria de procedimento estrito, adaptado ao seu objecto, a psicanálise organiza bem ou mal, a relação terapêutica fazendo fogo de toda a lenha, o que dá ao resultado obtido um aspecto luxuriante. A psicanálise pode explorar as intuições e esgotar-se nelas. Abre determinados horizontes e desemboca por vezes nos delírios. (Ouça esta poesia inspiradora da realidade que ultrapassa a noção comum de certeza. A tua voz está escura de beijos que não me deste/ de beijos que não me dás/ a noite é pó deste exílio// teus beijos penduram luas que gelam o meu caminho/e/ tremo debaixo do sol//XV - Dibaxu de Juan Gelman (Edium Editores, Matosinhos, 2007)). Parece faltar-lhe a este método de análise um uso do método reflexivo, que encerrando-o numa cintura de rigor permita desfiar o que é verdadeiro do que é falso. No extremo da crítica epistemológica surgiria então a suspeita que, talvez, estivéssemos apenas no estado de um pensamento pré-científico, rico mas insuficientemente reflectido.As neuroses, a angústia, as fobias que conhecemos colam-se às formas descritas por Sigmund Freud.

A experiência analítica recebe coerência e continuidade, e por esse viés pelo menos, um progresso que a leva a afirmar-se com um carácter indiscutivelmente científico, que confirma a aptidão da base intuitiva do freudismo para esclarecer os aspectos mais inumeráveis da experiência humana. Se a psicanálise se integra mal noutras dimensões do pensamento científico, ela desenvolve em contrapartida, a sua virtude compreensiva própria e adequada a respeito da nossa cultura. Apesar de um deslocamento na estrutura do método e através de modos de pensar inadequados constitui-se num estilo científico original. O núcleo consistirá em controlar a relação intersubjectiva o que lhe outorga a chave de uma terapêutica de doenças mentais resultantes dos traumas de relação, e mais geralmente ela constitui uma fonte e forma de pedagogia reflectida, entendida como um estremecimento recíproco das consciências.

Sob uma capa de um desejo de investigação positiva que salvaguarda a dignidade profissional, o psicanalista envolve-se com os «seus» doentes nesta estranha relação de hipnotizador e hipnotizado ou de ver até onde vai o exibicionismo do doente, as satisfações de conceber o seu «magnetismo pessoal» e a boa vontade terapêutica que jogam rotativamente o seu papel. O consentimento de entrar nessa aventura, seja mesmo a da ambiguidade, o clínico renuncia por isso mesmo, pelo menos parcial e implicitamente a descrever a partir de fora a doença como uma entidade, de que uma eventual pesquisa etiológica ulterior permitiria um tratamento fármaco-dinâmico. Tão carregada de significações degradantes quais sejam a da prática hipnose, paradoxalmente a psiquiatria humaniza-se.

Notar-se-á como um Janet em termos históricos e em razão da sua formação filosófica, se entrega a tentar perceber a originalidade desta terapêutica, e exaure a teorização da categoria de explicação. Embora Sigmund Freud faça uso da reflexão e se prenda a categorias ao mesmo tempo que as purifica, estabelecendo-se no seu bom território até ao momento em que tudo se resolve na teoria da transferência. Aí estão envolvidas as relações intersubjectivas que se estabelecem independentemente dos transes e da escusa absolutória do desdobramento de personalidade encimada numa relação de tipo pedagógico ou racional em que a base são as confidências duma relação taumatúrgica de influência e de liturgia propiciatória. Existirá, no sentido psicanalítico, no modo humano, sempre e em qualquer caso uma relação intersubjectiva pouco lúcida.