Friday, April 21, 2006

A razão universal e o judaísmo

André Veríssimo
KoaH


George Bataille (1897-1962), transpôs as suas obsessões com horror, obscenidade e morte para a escrita mas ao contrário de Céline tais motivos foram projectados para explorar a trangressão da pura homogeneidade, o eu autêntico, abrindo a identidade pessoal e comunitária à heterogeneidade e à alteridade. A revisão de Bataille das Reflexões de Jean-Paul Sartre apareceram em 1947 na revista Critique, que Bataille fundara em 1946, de que se tornou director e onde pontificaram autores como Maurice Blanchot que viria a ser um indicador e prospector de autores tão importantes como Roland Barthes, Jacques Derrida e Michel Foucault.
Bataille começa a sua resposta pela afirmação de que o estudo de Sartre sobre o carácter do judaismo e dos anti-semitas é “consequência de uma das mais escuras acções a marcar o significado da humanidade”, acrescentando que “ a imagem do homem é inseparável, de agora em diante, das câmaras de gás...”. A citação acaba com reticências como grande parte dos escritos de Celine, aqui conotando talvez uma abissal transgressão efectuada de forma sistemática, burocrática, destruição massiva da vida, seguindo a lógica mais proeminente da racionalidade instrumental e utilitária que é o alvo maior do projecto crítico de Bataille. Evidentemente criticando o modo antisemita de Céline, Bataille insite em que “não é bastante, se o horror deve ser ultrapassado, transferir o horror para uma certa categoria de homens. Alguém recomeça nesta forma a cobardice do antisemitismo. A decepção do bode-expiatório. É necessário ir mais além e reflectir inteiramente na Questão judaica”.
A resposta de Bataille é então de uma forma geral afirmativa desde que o perfil de Sartre do antisemitismo fornece a lição capaz e as suas Reflexões procuram a compreensão dos problemas -- irradiantes da “Questão Judaica” depois de Auschwitz. Mas Bataille conclui pela apresentação de vários pontos críticos. Discute as categorias de Sartre e julga-as excessivamente rígidas; critica o paralelo estabelecido por Sartre entre o democrata liberal e os judeus inautênticos que ambos combatem desde a sua situação existencial rumo a um universalismo abstracto. O problema para Bataille é que esta forma particular de existencialismo transforma Bergson, Husserl e Espinoza em judeus inautênticos. Embora concorde em que “é verdade que o universalismo do pensamento judaico é um debate desde as origens, ele não obstante insiste em que esta negação é também a expressão indirecta duma “situação” da qual é ela mesma a superação”. Como tal, Bataille insiste, “o pensamento judaico coincide com o pensamento revolucionário. Não foi afinal Espinoza o primeiro dos pensadores democráticos?”
Bataille vai mais além no questionamento dum número de assunções que Sartre faz a respeito da relação entre a razão, do universal e do particular. Questiona-se sobre “se a razão se torna, por sua vez, particularidade”, quando opõe o judeu ao resto do mundo, e se a crítica sartreana do antisemitismo não se torna ela mesma... uma crítica do racionalismo” e finalmente se negando a sua particularidade, “o judeu” não contribuirá para “ o nascimento do autêntico mundo universal no qual a luta contra o antisemitismo dá na verdade origem a uma existência “em situação”.
E conclui com uma afirmação ambivalente: não diria que a critica sartreana não tem qualquer valor (existe uma luta na base do universalismo) mas existe uma épica da razão e os judeus escreveram algumas das suas mais autênticas páginas. Mais do que isso a autenticidade judaica consiste precisamente no facto de que em Auschwitz a razão sofreu em si mesma na carne.
A conclusão de Bataille celebrando uma “épica da razão” releva uma problemática de significação teológica da noção do Holocausto, antes do termo, onde as vítimas sacrificiais judias sofreram como meio das vicissitudes da razão. Os judeus sofreram dentro do Logos desta épica que serve nas palavras de Bataille em Os caminhos partilhados, para restaurar o mundo sagrado cujo uso servil foi degradado, tornado profano.
Assim se compreende também o que alguns historiadores dizem coetaneamente sobre os caminhos da consciência de um tempo mais antigo, em que a história judaica se fez in-comum da portuguesa (na Revista Oceanos): desde há umas décadas que os historiadores aprenderam o suficiente acerca da ruptura histórica para não dramatizarem estes desencontros entre a sensibilidade do presente e as sensibilidades que modelaram as acções humanas no passado. Os historiadores sabem que, no passado, as quadros de valores eram outros, como outras eram as leituras do mundo e a panóplia dos sentimentos. A ideia de ruptura trouxe consigo a consciência da multidimensionalidade do homem, do carácter "local" das suas culturas e, consequentemente, da descontinuidade radical entre o passado e o presente. E esta descontinuidade tanto liberta o passado das categorias de avaliação do presente, como liberta o presente das responsabilidades do passado. Para os historiadores, umas das condições para fazer "boa história" é justamente esta des-responsabilização emocional e ética perante os objectos estudados. O passado foi o que foi e não pode ser reformatado. E a sua escrita - sob forma de história - visa hoje, justamente, conhecê-lo integralmente, na sua lógica e axiologia locais, encerrando-o nesse estatuto de coisa definitivamente feita, que apenas nos interessa para nos chocar com a sua alteridade e contribuir para nos dar tanto a irredutível diversidade do humano como a precariedade das nossas actuais certezas.

Texto publicado em www.oprimeirodejaneiro.pt
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