Monday, May 22, 2006

A “Nossa” Beit Knesset do Olival.

Alguém morreu em vão?

André Veríssimo*

Outro dia dei comigo a passear pela Judiaria do Porto: a Medieval e a observar a Eichal da Sinagoga do Olival… Com umas quinze pessoas fui dialogando entre juristas, farmacêuticos, professores, militares, gestores, administradores e crianças, que quiseram saber o que somos, nós, os judeus…marranos. Eu falei e pensei e meditei no peso das palavras, das mitzvot, das pedras e na presença duma sinagoga vazia entregue inesperadamente ao cuidado dum Cura simpático, da Igreja vizinha, o que me flagelou moralmente desde o primeiro momento de tempo a memória por resgatar, … e a que falta da vida da Sepher Torá! E a pensar no Holocausto, na Shoah ibérica, do largo de s. Domingos de há 500 anos e na bestialidade recidiva de há 70 anos….É Hans Jonas que vem falar da não omnipotência de D.us. Baseando-se em argumentos ontológicos e teológicos e autenticamente religiosos resolve discutir nesta base uma omnipotência divina absoluta e ilimitada. A omnipotência divina só pode coexistir com a bondade divina ao preço da insondabilidade de D.us quer dizer, do seu carácter enigmático. Daí Jonas releva os três atributos em que a questão do homem sobre D.us recupera um sentido de incerteza próximo dos tempos de sofrimento: “ só um D.us de todo incompreensível se pode dizer que ao mesmo tempo é absolutamente bom e omnipotente e que tolera, ao mesmo tempo, o mundo tal como é. Dito de maneira mais geral, os três atributos em questão — bondade absoluta, omnipotência e compreensibilidade — estão numa relação tal que qualquer de dois deles exclui exclui o terceiro” Jonas, Hans, Pensar sobre Dios y otros ensayos, Herder, Barcelona, 1998, p. 207. Portanto, a pergunta é obsidiante em torno a qual dos três atributos descontinuar. “ A bondade, quer dizer, o querer o bem, é certamente inseparável do nosso conceito de D.us e não pode ser restringido. A compreensibilidade e cognoscibilidade estão duplamente condicionadas: pela essência de D.us e pelas limitações do ser humano, e em última instância está sujeita à limitação, porém sob nenhuma condição pode ser totalmente negada. O D.us absconditus, o D.us oculto, é uma ideia profundamente alheia à fé judia. É com base num racionalismo e num optimismo obtemperado que o judaísmo se baseia nos pressupostos racionais para o conhecimento de D.us. Uma teodiceia muito particular, uma vez que exclui a totalidade do conhecimento de D.us. “ A nossa doutrina, a Torah, baseia-se e insiste em que podemos entender a D.us, naturalmente, não de todo, porém algo dele, da sua vontade, das suas intenções e inclusive da sua essência, porque se nos deu a conhecer.” [Ib., pp. 207-208. A concepção da revelação, mandamentos, leis, das mediações como a língua e o entendimento, tornam os signos da comunicação da Alteridade de D.us não obscuros e inaceitável a concepção dum D.us oculto].Daí que se torne um escândalo para a inteligência a sustentação depois de Auschwitz da coerência entre os três atributos referidos: uma divindade omnipotente ou bem não seria infinitamente boa ou totalmente incompreensível (no seu domínio sobre o mundo, que é unicamente onde podemos compreendê-la). Se ele se torna compreensível até certo grau a sua Bondade deve ser compatível com a existência do mal, e só o pode ser se não é Omni-potente.Qualquer herança da tradição judia requer a consideração do poder de D.us como limitado por algo cuja existência por próprio direito e cujo poder de actuar por própria autoridade são reconhecidos por D.us mesmo. Poder-se-ia interpretar isto como uma concessão de D.us, que Ele pode revogar quando queira. O problema parece ser o da discrição da actuação de D.us e da sua ruptura com essa constituição ou regra de impassibilidade sempre que tormentos real e absolutamente monstruosos de seres humanos que infligem e infligiram a alguns outros, inocentes, de maneira unilateral. Porém não houve milagres de salvação. Durante os anos de atrocidades de Auschwitz, D.us permaneceu em silêncio. Em silêncio! Os milagres eram humanos, de povos que não recusaram o sacrifício da própria vida para salvar e atenuar, e que compartilhavam em tudo quanto era inevitável, o Destino de Israel. Esta tarefa incumprida de D.us é apontada por Jonas como um D.us que renunciou ao seu poder de Poder, ao seu poder de imiscuir-se nas coisas do mundo; o sentido do êxodo perdeu-se, porque a intervenção da “mão forte e do braço estendido” fez-se como intensidade da sua muda solicitação de objectivos por consumar.Os enunciados acerca do poder supremo de D.us da doutrina judaica, são para Jonas caducas: o prémio dos bons, o castigo dos maus e as profecias messiânicas. Daqui o significado espantosamente crítico dum significado do Shoah, que revela uma viragem nas preces (treze doutrinas) de Maimónides e na continuação duma fé controvertida pelo peso fatídico duma História actual que transmuta em sofrimento a promessa mil vezes repetida. A questão primacial do judaísmo pós-Inquisição e pós-Auschwitz é o do mal por vontade e não da causalidade. O acto de auto-alienação divina pressupõe a autonomia da liberdade no criado. A auto-limitação subsiste no Acto Criador com a sua unidade, deixando espaço à existência humana derivada duma acção de absoluta soberania de-si, de D.us. O conceito cabalístico de contracção TZIMTZUM, que significa também retirada, auto-limitação, responde a esta interpretação sacrificial de D.us, ou da hermenêutica do des-astre. Os actos de recolhimento, limitação, vazio, respeitam aos elementos, coisas que existem ao lado de D.us, sendo esta a medida de perseveração do ser das coisas no todo dentro do todo divino.Assim percebemos que não obstante esta limitação teologal da doutrina de Jonas, o sentido da plenitude do poder de D.us em Job é invertido em renúncia ao poder. Ainda que a conta fique por saldar de uma geração, e por fim que a superioridade do bem sobre o mal é o signo duma alteridade projectada para a possível paz do reino invisível. A compreensão desta paz passa pelo sofrimento daqueles que como Job sofrem para que a obra de D.us se cumpra, como sempre no tempo justo. Em Franz Rosenzweig, (La Estrella de la redención, Sígueme, Salamanca, p. 327), o tempo justo exprime-se num ser que não necessita de tempo, senão como redentor de Mundo e Homem, e isto, não porque Ele o necessite mas porque Homem o Mundo o necessitam. Pois para D.us o futuro não é uma antecipação. É o eterno, o único eterno, o Eterno. O vestígio do outro é em primeiro lugar o vestígio de D.us que nunca está aí. Pertence já ao passado. Essa a razão porque Levinas usa a terceira pessoa. ELE. Isso exprime uma impossibilidade. A de que ele a abandonou a si mesmo dizendo: não há graça neste sentido preciso. Ele está sempre ausente. E isso, Levinas “observa-o como vestígio do Outro no homem. Neste sentido todo o homem é vestígio do Outro. O Outro é D.us fazendo irrupção na palavra. Se tudo fosse dedutível o outro seria incluído no Eu. Tudo o que não é dedutível... expressa ainda a começo por um conceito dum D.us que é um “ELE”.Acrescenta num jeito de incessante adiamento do caos — o Shemah Israel.O Homem é acima de tudo consciência e responsabilidade. Esta responsabilidade é sempre a cada momento, a responsabilidade a respeito de certos valores. Não se trata de valores eternos. São assim valores passageiros que acontecem uma vez. Aquilo a que Max Scheler chama valores de situação. Os valores não se referem a uma situação mas estão perfeitamente adequados à pessoa. E são cambiáveis de pessoa para pessoa. Manifestam uma exigência de realização, que irradiam do mundo dos valores para a vida dos homens, tornando-se assim o imperativo concreto da hora no chamamento pessoal de cada indivíduo. E enquanto o homem não se dê conta do carácter específico da sua própria existência, que vive uma vez e de modo único, não estará em condições de viver a realização do que constitui a missão própria da sua vida como algo que verdadeiramente o obriga e do qual não pode desembaraçar-se. É nesta sentido que o sentido da vida se dá em termos de concepção geral dentro de três possíveis categorias axiológicas. Falamos de valores de criação, de vivência e de atitude. A primeira categoria realiza-se por intermédio dos actos, a segunda mediante o acolhimento passivo do universo pelo eu. Os valores de atitude realizam-se sempre que admitimos como tal algo que reputamos de irremissível, fatal como o destino. E é fatal que o estado de coisas se perpetue? Com respeito ao modo como cada um de nós o aceita se abre perante nós uma multitude de possibilidades de valor. Não cabe qualquer dúvida de que sabemos valorizar de um modo incomparavelmente elevado o sentido da vida e da memória e o valor moral do homem da comunidade, que não luta em vão. Atitude que nos cabe tomar para sabermos negociar o que nos fugiu da mão, num passado incerto…

* Pr. Associação Judaica KoaH.